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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Adeus a uma frente de batalha. Bom-dia a outra.

Se houver um terramoto, em Bruxelas, se caírem as Instituições Comunitárias, com os seus eurocratas lúbricos e os seus carros potentes, quem se quiser salvar que vá para a Praça do Vieux Marché. Lá ainda se sente que os chefes belgas, de Ambiorix, que resistem aos Romanos, esperam nas florestas sombrias que já não existem senão nos seus olhos mergulhados na cerveja soturna. São tudo gente em fuga da Ásia, gente irmanada no pavor, loira e morena, que foge ao asteróide, despenhando-se do firmamento, para sempre imortalizado na cruz celta. Disse isto um dia a uma mulher grega de rara beleza. E ela, nos seus olhos azuis, como a mármore descendo degrau a degrau à beira-mar, percebeu perfeitamente que somos gente que foge, desesperada, com os filhos nos braços, a um mal inexplicável. Só querem um lugar para se abrigarem, inclusive os loiros resplandecentes, que foram uma vez albinos e que saltam dos Drakkars como cães loucos, porque não podem viver sempre à luz do sol. São os sentimentais, os ingénuos apavorados. Os que atacavam nus as legiões romanas, pintados de azul, como a noite em que se refugiavam, e que venciam ou morriam no primeiro ataque. Os que se entornavam como vinho novo sem taça. Se fores ao Vieux Marché, hás-de lá ver aquela velha vendedora ruiva que fala compassadamente, depois de atravessar a orla da morte, numa trombose. Cada vez que a ouvia, percebia que Bruxelas tem uma força inesgotável. E aquela mulher magrinha de extraordinária beleza e o corpo esquálido de muitas lutas contra a droga, que vai lendo os livros que vende e não vende um livro que esteja a ler. E os comerciantes árabes, gratos a Alá por poderem ter ali um porto do Mediterrâneo onde toda a gente, aos berros e aos corações, se vai entendendo, os laicos que buscam compreensão, os devotos que encontraram na sua fé uma forma de não serem robots, nem dentro, nem fora da mesquita, porque Alá não nos criou máquinas, criou-nos à Sua imagem. Para quem vir o Vieux Marché, perceberá um dia que o mercado nunca foi uma mão invisível amputada, que não nascemos ensinados e que sofremos todos de amnésias passageiras e temos que bater à porta uns dos outros para que nos lembremos de coisas essenciais. Posso entrar? Esqueci-me do meu nome. Podes-me ajudar? Só nas paredes do Vieux Marché vi um cartaz, não assinado, que me respondeu assim: «terroristas são os que criam guerras, para invadirem terras distantes. Terroristas são os que nos obrigam a viver sempre em medo, medo de que o dinheiro não chegue ao fim do mês, medo de não ter os papeis em dia, medo da polícia, medo do trânsito, medo das doenças girando nos canos. Ai dos que julgam que a liberdade é comer um iogurte biológico numa cidade em que os seres humanos são as pedras de um muro!». E, na bruma do Vieux Marché, onde deixei o coração, vejo a sombra fantasmagórica do bom Rei Balduíno, que viveu e reinou estreito no seu povo, deixado preso, por um fio, pelos políticos oportunistas. Vejo-o montar um cavalo velho e o povo que se junta a ele unido como um uivo rouco, na bruma, rondando com ele, em silêncio, pelo Vieux Marché, pelo direito a ter uma alma que custou tanto a preservar. Pelos que caíram, contra os invasores, com nomes flamengos e valões, uns sobre os outros, bendita sejas, Bruxelas, campo de batalha, entre outros, rumor de Ambiorix na floresta, grito ensandecido de Robin Hood voando das árvores, olho do furacão.

André

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