Perguntaste-me, Gil, de que lado me bateria na Guerra Civil de Espanha. Eu, a quem chamavam o «Guerra Civil» e que fui sempre uma Guerra Civil dentro de mim. Respondi-te que achava estranho fazeres-me essa pergunta ao fim de tantos anos. E disse que eles não esperariam por te perguntar. Disse-te que, se não tivesses fugido de madrugada, de manhã estarias encostado ao muro. E eu contigo. E hoje não sei dizer-te quem eram «eles». Por estes dias, há muitos anos, nasceu um cigano, El Pélé, que apostrofou os milicanos quando, em 1936, estes, perto de Lérida, espancavam um cura. Eles prenderam-no e obrigaram-no a que lhes entregasse o terço. Ele não o fez e foi fuzilado de manhã. O «El País» de hoje vem com um artigo relativo à descoberta dos ossos de dois professores primários fuzilados pelos falangistas. Uma delas, Maria de los Desamparados, morreu a rezar e não entregou o marido que era republicano. O chefe falangista, a pedido do filho, poupou a vida ao marido. O filho passou o resto da vida a procurar a cova onde enterraram a mãe.
Houve muitos assassínios, de parte a parte, em Espanha, e eu só desejo que não volte a acontecer. Espero que bascos, castelhanos, catalães e outros se entendam. E se esse entendimento significar o fim de Portugal, o sonho de Nun’álvares, que se batia contra os próprios irmãos e da Ala dos Namorados, os desgraçados sem um tusto para se casarem, que mais baixas sofreram em Aljubarrôta, continuarei a ser português, como um cigano. Ficou-me na cabeça Maria dos Desamparados, professora primária que, antes de saber ao que ia, disse ao filho para dormir em paz e que se não preocupasse. E do Santo Pelé. E lembrei-me que todo o homem é cigano, todo o homem é filho do vento e do fogo que sopram onde nunca se sabe, que nenhum homem tem morada. Não quero matar, se bem que este meu desejo não valha de nada, porque eu sou Caim. E Abel jaz morto e apodrece.
E, se todo o homem é cigano, nenhum homem tem terra, nem boa reputação. Nem sempre vende apenas camisas de contrabando, nem sempre prefere trabalhar a pedir esmola nos semáforos. Nem cigano sou, nem gosto de «Gipsy Kings» mas visto uma camisa Lacoste de contrabando de côr flamejante, e exibo-a com orgulho, porque sou uma tocha a arder na noite escura, pois não sei a que lado pertenço, não sei ao que vou nem ao que venho, só sei que não quero matar.
André
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