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quarta-feira, 8 de julho de 2009

"A Aversão", de André de Melo (3ª parte)

A Si tinha ficado a falar com o Director do “Europa”. Este deixara-se enterrar numa poltrona com os joelhos completamente juntos e os pés cada vez mais afastados.
De vez em quando punha as mãos entre as pernas e olhava para a sala semi-vazia, um pouco desolado. A contracção em que vivia - o prestígio também, é certo - como Director do órgão oficioso do Estado (o que era diferente de Governo), a religião do colarinho branco e dos fatos muito respeitáveis em que tinha sempre vivido, deixavam-no, por vezes, de rastos. O pior era quando antecipava os pequenos gestos de contracção próprios da intimidade e lhes começava a soçobrar ainda em público. Fazia uma triste figura, ele, que enganara tanta gente com o seu queixo sem pescoço sempre apoiado num firme colarinho engomado e as meias pretas longas compradas em sítios que se segredavam como os fornecedores de droga ou de charutos havanos de imitação. Tinha a roupa toda engelhada à volta das pernas, contraídas num frémito de aflição e o casaco pendurado no palmo de ombros como a sobrecasaca do grilo dos desenhos animados. Ficara um bocado como o marido da Mi, o negociante francês (estão a lembrar-se, certamente) mas não era já um mergulho de cabeça na depressão porque toda a figura estava patinada de claro e dava um certo ar primaveril. Era antes um murro no estômago do ânimo, o que condizia, aliás, com a sua posição, curvado, de cotovelos no umbigo. Ficaram juntos, ele e a Si, por algum meneio que esta deu ao corpo grande onde já adornava um sortido razoável de hospitalidades. (ler mais)

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