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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Viver para contar

Acho que a Democracia é um erro, um erro monstro. E é-o por muitas razões, tantas quantas aquelas que achamos que deviam ser as coisas belas da vida e das quais desistimos porque achamos que nunca se realizarão. Por isso dizemos que a Democracia é o menor dos males. E esquecemo-nos de perguntar quem somos nós para dizer o que é o menor dos males. Não, o Povo não tem razão. Nós não temos razão. Morreram duas centenas de pessoas sobre o Atlântico. Temos a noção que foi um mal terrível. Será o menor dos males se não foram assassinadas por terroristas e se tivessem morrido sem dor. Não se pode dizer que ninguém sabe. Sabem mas não querem dizer porque destruiriam uma indústria que enche os bolsos a ricos e enche o prato a pobres e, pior, que mistura as pessoas todas umas com as outras, acabando com o racismo, dizem. Como se as pessoas não fossem diferentes porque estão ligadas a um certo lugar. Mas aqueles que precisam de enganar o mundo inteiro porque já ninguém acredita neles, no lugar onde nasceram, não param enquanto não impuserem a sua vontade ao mundo, enquanto não tiverem calado os outros todos. Eu já passei um voo assim. O meu avião entrou dentro dum furacão. A voz dos pilotos tremia. Eu estava sentado atrás e a fuselagem ondulava como uma barraca de palha. E, por cada ondulação o avião estalava com pancadas terríveis. Uma senhora com os filhos chorava. Os filhos perguntavam ao pai se iam cair. O Pai, corajosamente, berrava com eles a dizer uma coisa que não é verdade: que as coisas só acontecem aos aviões ao aterrar ou descolar. Ao meu lado, um veterano da Guerra colonial já deixara há muito de dizer que sobrevivera a aviões muitos piores quando fora transportado como soldado, para lugares onde alguns dos que sobreviveram ao voo, morreram em tiroteios, em emboscadas, ao calcar minas. Ao fim, em paz, depois de pairarmos sobre um mar calmo onde se reflectia a lua, os pilotos e as hospedeiras alinharam todos em silêncio, de chapéu na mão enquanto saíamos. Não se ouvia um zumbido. Como crianças grandes, deste pesadelo chamado Democracia, todos fugiram envergonhados, salvos mais uma vez, para as suas casas. E eu voltei a voar, a sofrer horrivelmente, a rezar à descolagem e à aterragem, a imaginar o meu Amigo Júlio Santos como um cavaleiro medieval, coberto de sangue levantando uma asa e um anjo enorme levantando a outra. Desfiz-me em fraternidade com os meus companheiros de viagem, tão diferentes, fui irmão, fui pai, fui filho, chorei, ri-me, sobrevivi para contar. Entreguei a alma ao criador, entreguei todos os meus bens, sonhei pela última vez com alguém que amei e que me não correspondeu, ajeitei como um anjo a roupa da cama à minha filha adormecida, troquei as últimas indicações de casa com a minha mulher de que me separei, afaguei a fronte do meu pai doente e da minha mãe sofrida. Disse ao meu irmão para não se preocupar e amei sinceramente, sem dúvidas, a Humanidade inteira. Vi Jesus estendendo os braços sobre o Mundo. Vi Buda sorrindo no Sol, senti os braços de Alá segurando o Universo que me rodeavam. Sobrevivi. Mas uma sociedade que assassinou estes passageiros todos duma forma tão bárbara sobre um lugar tão frio e inóspito que só uma certa raça de gente, e não qualquer um, a pode percorrer, não vou perdoar. A Democracia, a Técnica, a soberania absoluta dos votos e da liberdade de expressão, não são o melhor dos possíveis. A Democracia que dá a Soberania a nós todos, retirando-a a tantas coisas que existiram e existirão além de nós, não é o menor dos males. É o maior mal dos menores. E lembro-me de um ditado chinês com milhares de anos: nascer e morrer numa aldeia, ter acordado dias sem conta com o latir dos cães da aldeia vizinha. E nunca a ter visitado. Não sofremos já todos demasiado para nos tratarmos delicadamente, com carinho, com Amor, como se o nosso Próximo fosse o último?

André

1 comentário:

  1. Só para esclarecer, a título pessoal, que mantenho saudáveis e estimulantes divergências ideológicas e religiosas em relação ao que o André por vezes aqui escreve. Mas só me refiro a elas porque o motivo que me traz aqui é outro bem diferente: para que conste, não sou amigo da pessoa aqui nomeada. Essa menção é da exclusiva responsabilidade do autor do texto. Vontade essa que aqui é respeitada, por via da natural deferência para com o André. Quanto à referida pessoa, para além de ter prestado um péssimo serviço à causa pública, utiliza métodos que sempre combaterei e denunciarei. E sobre o assunto, I rest my case.

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