Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Tábua de marés (36)


“Rugas”
Exposição de fotografias de Carlos Pedro (portfólio)
Galeria do Paço da Cultura da Guarda
De 9 de Março a 30 de Abril

Sobretudo na arte (pronto, já disse a palavra), é preciso chegar ao ponto exacto em que não basta a justeza das imagens, mas a evidência de serem lidas como simplesmente imagens. No fundo, uma preocupação de ordem higiénica. Claro que o célebre trocadilho de Godard, só possível na década da inocência, resulta melhor em francês. Mas o alcance da expressão do cineasta resiste bem à alteração do idioma. Até agora, de Carlos Pedro “só” conhecia a sua figura afável, a sua boina sempre presente, a sua música, a sua disponibilidade perante a vida. Quando soube que também se dedicava á fotografia e que alguns dos seus trabalhos iriam ser exposto, só pensei o seguinte: eis uma obra que, por desconhecer em absoluto, de certa forma é impossível decepcionar-me. Pois o que sabia do autor coloca-a acima da dúvida, ou da surpresa. Mas estava longe de imaginar que, neste caso, só em relação à primeira parte estava certo. A surpresa foi tão intensa como espontânea, diante das imagens captadas por Carlos Pedro. As quais, voltando ao início, para lá de simples imagens, são também, imagine-se, igualmente justas…
A mostra está organizada de modo a ocupar as três divisões da galeria. Nas primeiras duas, predomina o retrato individual. O motivo vai desde o clássico – onde “De cabeça erguida”, “Encontro com o tempo” e “O regresso a casa” são os exemplos mais notáveis – até ao retrato em ambiente de trabalho (vd. a notável imagem do produtor artesanal das facas do Verdugal, “O fio da vida”), passando pelo registo iconográfico (“Domingo” e “Fé, em Santa Eufémia”). A última sala foi escolhida para a obra mais temática, privilegiando as manifestações musicais e festivas, numa perspectiva alternadamente colectiva e individual. Neste capítulo, destaque para duas sequências: a dos tocadores / pauliteiros transmontanos e a da “Festa dos Montes”, numa aldeia do concelho de Trancoso. Quer num caso quer no outro, o autor captou muito bem o movimento colectivo, o ritual que transcende os participantes, mas nunca os apaga. Dilui-os sim numa celebração pagã, onde o peso da terra não consegue iludir os esforços para lhe escapar. E onde a qualidade evidenciada por grande parte das imagens garante não só o valor artístico, como o interesse documental. Mas onde estão, afinal, as rugas, essas mesmas que deram o título à exposição? Encontramo-las um pouco por todo o lado. Nos rostos e nas mãos, é claro, nas pedras, nos portais das igrejas, nos sulcos do arado acabados de rasgar, nos alpendres sombrios, nos gravetos que alguém carrega às costas, nas uvas e no pão da peregrina, nas flautas e nos acordeões da festa, na espessura do silêncio, na pedra de amolar, no fio dobado. As rugas são os sinais inescapáveis do tempo, as gelosias por onde espreita uma suprema dignidade. Mas esta mostra memorável diz-nos também algo de novo: que as rugas são também as comissuras onde o tempo se esconde, as guaritas onde, como sentinelas, vigiamos a eternidade.

Publicado no jornal "O Interior", em 12 de Março

1 comentário:

  1. Só a sensibilidade consegue ler, de forma clara, o que os olhos nos mostram.
    Bem-hajas, Godinho, pela leitura.
    Um abraço

    ResponderEliminar