Michael Red: laptop e electrónica
Kenton Loewen:bateria
Pequeno Auditório do TMG, 13 de Fevereiro
Tanya “Tagaq” Gillis é uma throat-singer. “Uma quê?”, já ouço dizer. Será uma cantora “constipada”, por causa da inclemência do clima do árctico? É e não é. O seu instrumento, ao contrário da maioria dos cantores e paradoxalmente, é a sua garganta. Nesta técnica vocal são produzidos, em simultâneo, vários registos. Muitos deles com timbres invulgares, através do uso de uma ressonância produzida na garganta. O recurso fonético não é original da etnia esquimó Inuit, norte do Canadá, de onde provém a cantora. É utilizado, em larga escala, no Tibete, na Mongólia e em Tuva, na Sibéria. Menos conhecido, aparece igualmente nas tradições da tribo Xosa, em África do Sul e na cultura Ainu, no Norte do Japão. O que é original no “Inuit vocal game”, como se percebeu no concerto, é o uso de sons guturais imitando animais e os ritmos dos cânticos de Kataijaq. A artista define esta tradição como um jogo vocal entre duas mulheres, representando uma reconstituição dos sons produzidos na natureza. É um jogo algo complicado, onde são produzidos dois sons que se vão repetindo a alternando. Quem lidera pode mudar a canção para o próximo verso sempre que quiser, pelo que o acompanhante deverá estar pronto a segui-lo. Não é algo emocional, embora possa soar desse modo. É um jogo. Só ris depois.” Portanto, um registo que se poderia definir como uma sinfonia de amostras sonoras captadas na paisagem do Árctico, numa performance, diria, operática. Tudo isto imbuído de uma sonoridade pop, de algum experimentalismo próprio da música improvisada e das vertiginosas manipulações próximas de Jon Hassell e Stina Nordenstam. Uma combinação que atinge a transcendência final graças à sua poderosíssima voz. Tanya trouxe um fulgor renovado ao que chamo o “artista global”, aquele que, partindo de uma tradição, define as suas próprias regras, misturando sonoridades épicas com ritmos tribais e uma pop orquestral. O talento e a singularidade artística de Tanya Tagaq já há muito foram reconhecidos. Participou na gravação do álbum “Medúlia”, de Bjork e integrou espectáculos do “Kronos Quartet”. A cantora deu agora seu segundo espectáculo na Guarda. Desta vez apareceu com uma formação musical diferente da anterior e basicamente veio apresentar o seu último trabalho, Auk (Blood), de 2008. O concerto foi o ponto de partida para uma experiência estética pouco usual. Que se poderia definir como catártica. Após uma ligeira introdução “ambiental”, a cantora iniciou a sua articulação de gritos surdos, como que chamando os ritmos que acompanharam a sua música até ao final. Uma catadupa de sons guturais e explosivos gemidos em staccato começou a invadir a sala, enquanto os intervenientes pareciam ganhar uma cumplicidade também ao nível da linguagem, enquanto Tanya atravessava as trevas, irrompia envolta numa luz majestosa e se recolhia na mais distante intimidade. Percorrendo o palco, ou gesticulando como só a deusa Shiva o saberia fazer, murmurando, transmutava-se de guerreiro para lobo, ou urso, ou caçador, ou criança inocente, ou, por fim, depois de um curto período de silêncio (neste caso, poder-se-ia falar de hibernação) entidade espiritual, introspectiva e plena de sabedoria. Tanya Tagaq trouxe à Guarda, pela segunda vez (e espero que não pela última), um precioso momento musical. Num espectáculo a todos os títulos memorável, para quem teve a felicidade de a ele assistir.
Kenton Loewen:bateria
Pequeno Auditório do TMG, 13 de Fevereiro
Tanya “Tagaq” Gillis é uma throat-singer. “Uma quê?”, já ouço dizer. Será uma cantora “constipada”, por causa da inclemência do clima do árctico? É e não é. O seu instrumento, ao contrário da maioria dos cantores e paradoxalmente, é a sua garganta. Nesta técnica vocal são produzidos, em simultâneo, vários registos. Muitos deles com timbres invulgares, através do uso de uma ressonância produzida na garganta. O recurso fonético não é original da etnia esquimó Inuit, norte do Canadá, de onde provém a cantora. É utilizado, em larga escala, no Tibete, na Mongólia e em Tuva, na Sibéria. Menos conhecido, aparece igualmente nas tradições da tribo Xosa, em África do Sul e na cultura Ainu, no Norte do Japão. O que é original no “Inuit vocal game”, como se percebeu no concerto, é o uso de sons guturais imitando animais e os ritmos dos cânticos de Kataijaq. A artista define esta tradição como um jogo vocal entre duas mulheres, representando uma reconstituição dos sons produzidos na natureza. É um jogo algo complicado, onde são produzidos dois sons que se vão repetindo a alternando. Quem lidera pode mudar a canção para o próximo verso sempre que quiser, pelo que o acompanhante deverá estar pronto a segui-lo. Não é algo emocional, embora possa soar desse modo. É um jogo. Só ris depois.” Portanto, um registo que se poderia definir como uma sinfonia de amostras sonoras captadas na paisagem do Árctico, numa performance, diria, operática. Tudo isto imbuído de uma sonoridade pop, de algum experimentalismo próprio da música improvisada e das vertiginosas manipulações próximas de Jon Hassell e Stina Nordenstam. Uma combinação que atinge a transcendência final graças à sua poderosíssima voz. Tanya trouxe um fulgor renovado ao que chamo o “artista global”, aquele que, partindo de uma tradição, define as suas próprias regras, misturando sonoridades épicas com ritmos tribais e uma pop orquestral. O talento e a singularidade artística de Tanya Tagaq já há muito foram reconhecidos. Participou na gravação do álbum “Medúlia”, de Bjork e integrou espectáculos do “Kronos Quartet”. A cantora deu agora seu segundo espectáculo na Guarda. Desta vez apareceu com uma formação musical diferente da anterior e basicamente veio apresentar o seu último trabalho, Auk (Blood), de 2008. O concerto foi o ponto de partida para uma experiência estética pouco usual. Que se poderia definir como catártica. Após uma ligeira introdução “ambiental”, a cantora iniciou a sua articulação de gritos surdos, como que chamando os ritmos que acompanharam a sua música até ao final. Uma catadupa de sons guturais e explosivos gemidos em staccato começou a invadir a sala, enquanto os intervenientes pareciam ganhar uma cumplicidade também ao nível da linguagem, enquanto Tanya atravessava as trevas, irrompia envolta numa luz majestosa e se recolhia na mais distante intimidade. Percorrendo o palco, ou gesticulando como só a deusa Shiva o saberia fazer, murmurando, transmutava-se de guerreiro para lobo, ou urso, ou caçador, ou criança inocente, ou, por fim, depois de um curto período de silêncio (neste caso, poder-se-ia falar de hibernação) entidade espiritual, introspectiva e plena de sabedoria. Tanya Tagaq trouxe à Guarda, pela segunda vez (e espero que não pela última), um precioso momento musical. Num espectáculo a todos os títulos memorável, para quem teve a felicidade de a ele assistir.
Publicado no jornal "O Interior", em 19 de Fevereiro
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