Este episódio, relatado pelo Américo Rodrigues no "Café Mondego", despertou em mim o propósito de escrever algumas linhas sobre o que significa "ser" deste ou daquele sítio. Ou melhor, o que significa anunciar urbi et orbi que se é daqui ou de acolá. Antes de mais, convém isolar o enunciado "sou da Guarda" do contexto onde aparece. O qual só ao autor diz respeito. Pois é nessa declaração, e só nela, que vou pegar. Ora, o sentimento de pertença a um grupo, a um território, a uma cultura, a um corpo de representações colectivas comuns é, sem dúvida alguma, um elemento definidor da identidade do sujeito. Onde participam elementos subjectivos e objectivos, é claro. Mas nos quais não me vou agora deter. A existência social dos indivíduos é determinada, segundo Pascoaes, em primeiro lugar pela família a que pertencem, vindo depois a comunidade, associada a um território e, depois, a nação. Abstraindo do fundo de maneio ideológico que subjaz a esta construção, diria que, embora cada um se possa descartar de algumas destas filiações, dificilmente o poderia fazer em relação a todas elas. Centro-me agora na segunda, pois é dela que aqui cuido. O sentimento de pertença a um lugar é um laço identitário tão forte quanto relativo. Uma vez que pode não ser determinado pela naturalidade, mas pelas circunstâncias da existência, pela afinidade, por ser aí que se adquiriu a notoriedade, o conhecimento, a felicidade. Em suma, é um local adoptado que também nos adoptou, o que sinaliza uma verdade que uma ficção administrativa não pode fazer subsistir. Significativamente, na Idade Média e durante o Renascimento, era comum as pessoas serem conhecidas simplesmente por dois nomes: o próprio e o da cidade onde viviam, ou onde se notabilizaram. Erasmo de Roterdão e João de Ruão são só dois exemplos. Tudo isto para chegar onde? É menos importante o local de onde se é do que aquele onde se está. Claro está que, se ambos coincidirem e se para o sujeito essa ligação for importante, nada mais haverá a crescentar. Mas há mesmo. Porque existe uma relação inversamente proporcional entre o local de pertença formal que se invoca e a substância do seu conhecimento. Ou seja, quanto maior a veemência da afirmação do local de onde "somos", menos lá estamos, ou estivemos, efectivamente. Claro que, para muitos, esta questão nem se põe, uma vez que a sua identidade cultural passa por outras representações. Para esses, "ser" e "estar" são realidades simultâneas, nómadas e, porventura, risíveis, quando vistas em conjunto. No meu caso, posso adiantar que, estando fora de Portugal sou português, se isso vier à tona, e estando dentro sou prioritariamente "do mundo". Quando se trata de referir qualidades próprias, ou exemplos particulares, da Guarda. Na cidade, simplesmente "estou". Ou melhor, "vou estando". O que permite ficar dispensado de declarações redundantes e de querer ser dono de coisa alguma. Tásse? Ora bem!
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