Ontem passou no TMG o filme "Deus, Pátria, Autoridade". Trata-se de um documentário de Rui Simões, produzido em 1975 a partir de imagens de arquivo. E que pretende ilustrar a marcha da história no Portugal do séc. XX, especialmente a partir do declínio do Estado Novo. O título advém da invocação da célebre trilogia durante um discurso de Salazar, em 1936. Este registo constitui uma pérola da propaganda difundida por círculos ligados ao PCP, durante o PREC. O conteúdo programático não deixa lugar a dúvidas. Lê-se como um livro aberto. A ganga marxista está lá toda: a luta de classes, onde o "povo" aparece sob a forma de anjos imaculados arrotando palavras de ordem e palitando os dentes depois de uma sande de coiratos; a "burguesia" como uma galeria de personagens sinistras, fúteis, sádicas, que vivem para explorar o "bom selvagem" proletário. Os mesmos que detêm os "meios de produção" e tomaram conta da superestrutura política e ideológica (o Estado Novo e o "façismo"). Os mesmo que sustentaram uma guerra colonial destinada a assegurar os "lucros" de meia dúzia de exploradores e colonialistas sanguinários (neste ponto é curioso estabelecer uma comparação entre o rigor e a competência do documentário "A Guerra", de Joaquim Furtado e esta peça propagandística). Uma fábula onde só há os "bons" e os "maus". E com um final feliz, para sossego das consciências: a "evidência" da superação do materialismo dialéctico, o créme de la créme da vulgata marxista. Como? Pois bem, através do "fim da luta de classes", da marcha inexorável da história, conduzida na altura pela V Divisão, os governos do General Vasco Gonçalves e um vasto lumpen ululante, devidamente pastoreado pelos factotum comunistas. Era este o cenário que se perfilava no momento. Uma peça para um único personagem, "o povo escolhido", isto é, o proletariado. Formado pelo operariado fabril, intelectuais "progressistas", camponeses pobres", assalariados rurais e alguns burgueses transviados, depois de feito o indispensável acto de contrição. Neste ponto, a pequena-burguesia foi convenientemente silenciada, pois esperava-se que fosse a reboque dos actores privilegiados da História. Também a saga reivindicativa que hoje subsiste nos meios ligados ao PCP: os culpados são sempre os outros, o ressabiamento, a menoridade cívica, a endogamia. Para os comunistas, o uso das capacidades próprias e a iniciativa individual como factores de criação de riqueza são olhadas com desprezo; a essência dos indivíduos é determinada pela sua existência social, enquanto actores colectivos, convenientemente ensaiados para um só palco, a História pré-determinada e finalista. Depois, há pormenores deliciosos, como a desconfiança perante a autogestão, vista como um perigoso desvio pela ortodoxia pró-soviética. Ou os momentos em que é dada a voz ao bom povo, que papagueia um guião tosco e "normalizado", generosamente fornecido pelos agentes do aparelho comunista e engages avulso em voga na altura. O expediente mais não é do que uma forma insidiosa de paternalismo, ideologicamente orientado. Por último, a ira de um agricultor ribatejano, depois de lhe terem tirado a posse da sua terra, após uma questão judicial. Se a equipa de realização estivesse mais atenta, daria conta de que os desabafos perante as câmaras deste João Semana têm a ver unicamente com uma disputa de propriedade, cujo direito ele invoca urbi et orbi. Ora, segundo os comunistas, a propriedade é um roubo, uma indignidade. Enfim, distracções... Esta obra é, digamos, um poderoso registo acerca da cartilha marxista-leninista aplicada com fervor à revolução em curso em 1975. Está lá tudo o que é preciso saber sobre uma doutrina e uma prática política que quase triunfaram em Portugal. Não sem alguma ironia, um filme com propósitos documentais acabou por ser o melhor testemunho do ambiente político e ideológico que o determinou.
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