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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Até quando?

João Serpa, sindicalista, foi condenado no passado dia 17 de Janeiro a 75 dias de prisão. É a primeira sentença de prisão por manifestação ilegal em Portugal a seguir ao 25 de Abril. Ler aqui a notícia completa. É realmente aviltante a forma desigual como o sistema judicial aplica a lei. Basta enumerar a quantidade de casos de corrupção, criminalidade económica, peculato e fuga ao fisco que continuam por resolver. Mas nem vale a pena ir por aí. O grande problema está na sobrevivência contra natura da chamada lei da manifestação: o Decreto Lei nº 406-74, de 29 de Agosto, que visa "garantir e regulamentar o direito de reunião". O diploma apareceu durante a turbulência do PREC, destinado sobretudo a controlar as manifestações contrárias ao regime. Sendo uma lei pré-constitucional, não houve a indispensável adequação ao quadro dos direitos liberdades e garantias definido na Lei Fundamental, em particular ao "direito de reunião e de manifestação", previsto no seu art. 45º. O que significa que o diploma é claramente inconstitucional, como de resto já alertaram os mais insignes constitucionalistas. Porquê? Desde logo, porque ao fazer depender a realização de reuniões e manifestações públicas da comunicação prévia à autoridade administrativa, nos termos previstos no art. 2º do DL, esvazia-se de sentido a plenitude do direito em análise, tal como aparece no texto constitucional: "sem necessidade de qualquer autorização". Poder-se-á objectar que o DL prevê uma simples comunicação. Todavia, mais do que a letra da lei, interessa sobretudo atender aos seus efeitos concretos. É evidente que o "aviso" mencionado tem a marca inequívoca de um pedido dirigido à Administração pública para que pratique determinado acto. E esta, no uso dos seus poderes de autoridade - o jus imperii - produz a correspondente decisão: unilateral, embora vinculada, discricionária, embora fundamentada. Em todo o caso, destinada a produzir certos efeitos num caso concreto. Com o mesmo valor de um licença, uma homologação, um visto, uma concessão ou uma aprovação. Em suma, trata-se de uma verdadeira autorização, um típico acto administrativo. Por estar disso ciente, foi o próprio legislador que resolveu inovar, ao arrepio do sistema, quando impõe o recurso das decisões para os tribunais comuns e não para os administrativos, como deveria ser. É que, caso admitisse o recurso contencioso, estaria a reconhecer, implicitamente, a verdadeira natureza do acto em questão. Por outro lado, a própria lei sanciona criminalmente a sua violação, pelos promotores, qualificando o ilícito enquanto desobediência qualificada (art. 15º, nº 3). Esta tipificação é notoriamente inconstitucional, quer numa perspectiva formal, quer material. Cabe ainda dizer que, no caso do sindicalista condenado, deveria ter sido suscitada, durante o processo, a constitucionalidade da norma sancionatória, condição indispensável para um eventual recurso da decisão do tribunal para o Tribunal Constitucional (art. 280º, nº 1, al. b) da C.R.P.). Neste ponto, como bem refere o Movimento Liberal Social, "a lei apenas deve especificar, de forma geral e abstracta, quais os locais ou ocasiões em que uma manifestação não pode ter lugar, ou quais os limites que uma manifestação não pode ultrapassar. Dentro de tais limitações - que devem ser, em si mesmas, o menos restritivas possível - qualquer manifestação ou ajuntamento reivindicativo deve ser admitido. Não devem ser exigidas às manifestações de pequena dimensão qualquer comunicação prévia às autoridades ou quaisquer outros formalismos prévios, sendo que em caso algum a falta de comunicação prévia de um protesto pacífico poderá implicar pena de prisão ou qualquer outra sanção pesada." É urgente pois a alteração da lei em vigor, como de resto já tentou António Costa, quando era Ministro da Justiça.