A autora de Vamps & Tramps viu recentemente editada entre nós a sua última obra. Paglia não é, em meu entender, intempestiva. Antes pelo contrário: uma mulher furiosamente do seu tempo, que depois de estudar com Harold Bloom - a quem continua a chamar mestre - tomou do autor do Cânone Ocidental três exemplos: a voracidade da leitura, a logomaquia e o instinto do espectáculo. A catedrática de Humanidades de Filadélfia não tem a agudeza de Susan Sontag, nem o “mundo” de Beauvoir. Mas leu muito. Aproveitou os ensinamentos mais académicos de Bloom e possui uma lucidez devastadora, como quando descreve Foucault como o Cagliostro do nosso tempo. Sexual Personae tem um extenso dramatis personae. Que começa, antes da Nefertiti do subtítulo, com os nossos primeiros pais: Adão um pouco rebaixado, quase um castrati; Eva, comparecendo como a primeira e activíssima femme fatale da história. Mil páginas depois, o livro desemboca em Emily Dickinson, sobre a qual Paglia escreve um extenso capítulo final cheio de surpresas. No seu percurso ensaístico, Paglia passa do escolar ao fantástico. E essa mistura é um dos atractivos de Sexual Personae. O segundo capítulo, “O nascimento do olhar ocidental”, tem momentos de um brilho fulgurante, como o dedicado ao “olhar intenso” dos mais ilustres gatos literários, desde o Egipto a Baudelaire. Paglia é excitante e sabe fazer uso da sua capacidade expressiva, que alguns dirão provocadora. O seu trajecto desde o Éden perdido à Nova Inglaterra de Dickinson é realmente vertiginoso. E nem sempre o fôlego das suas reflexões está à mesma altura. Sobretudo quando o tema desenvolvido está lá apenas por necessidade narrativa e a figura ou a época referenciadas lhe interessam sobremaneira. Em “A beleza pagã” desenvolve um dos motivos centrais do livro – a androginia – e descreve graciosamente o imperador Heliogábalo no seu propósito de passar por mulher, ou até, fazer-se de puta da soldadesca. Paglia vai descrevendo todas as estratégias do augusto travesti, o qual, dissuadido pelos dignitários da corte da operação de mudança de sexo que planeava, ofereceu uma fortuna aos médicos para que lhe construíssem uma vagina artificial. Ao que acrescenta Paglia: “A ciência, que só recentemente conseguiu aperfeiçoar este tipo de operação, vai sempre à boleia da imaginação sexual. Na sua leitura andrógina e libertina de numerosas obras literárias, a autora mostra uma imaginação fogosa, de tal forma que se confunde com wishful tkinking. Por exemplo, não há dúvidas sobre o carácter regenerativo e abismal que a dor adquire nas obras do Marquês de Sade e Swinburne. Aliás, as páginas sobre este poeta inglês estão, com as dedicadas à pintura de Rossetti e Burne-Jones, entre o melhor do livro. No entanto, o acento lésbico é tão acentuado nas imprecações líricas de Emily Dickinson? Paglia analisa com sagacidade o imaginário lancinante da sua poesia (na minha opinião, penitencial, não sádica). Mas, em mais do que uma ocasião, deixa-se arrastar pelo parti-pris da sua tese inicial, favorável à identificação em mulheres reais ou imaginárias de uma virilidade simbólica. Sexual Personae tem um epílogo que mais parece um rol de intenções: “Voyerismo, vampirismo, necrofilia, lesbianismo, sadomasoquismo, surrealismo sexual: a Madame de Sade de Ahmerst (a terra natal de Dickinson) continua a esperar dos seus leitores que a conheçam”. Paglia é uma grande “intrometida” nos textos e autores que analisa. Pretende resgatar as linhas suprimidas da história da grande literatura e fá-lo com um desembaraço e uma qualidade que ela própria aponta à poetisa norte-americana. Às tantas, afirma que “Dickinson é uma pioneira entre as escritoras que renunciaram à boa educação”, querendo dizer com isso que a descortesia e o desafio às expectativas do leitor são o melhor património da liberdade criadora. Paglia segue essa via à sua maneira: assegurando o syllabus, mas aspirando a ser uma pin-up.
Sem comentários:
Enviar um comentário