Entre a luz e as trevas, o sol negro é uma presença constante na cinematografia de Andrei Tarkovski, desde "A Infância de Ivan" (1962). Tanto está o céu ofuscado pelo esplendor solar, como obscurecido por uma densa camada de fumo. Que paira numa agitação constante, impedindo o brilho do sol. Mudança de um plano para outro, durante a qual o sol não reflecte, mas refracta. O sol negro reconfigura-se também em NOSTALGHIA, (1983), nas sequências finais, quando já não é possível fazer mais nada. A Rússia, para Andrei (Gorchacov), está tragicamente perdida, uma luz cheia que a distância encobre. A Rússia da qual Andrei se afasta, estabelecendo-se em Itália, é um tempo encravado num espaço físico, cujos sentidos se convulsionam e se perdem em nostalgia. O retorno físico é inconcebível, porque a morte se intromete. Ao retorno físico do escritor à sua terra natal, Tarkovski interpõe o inevitável: Andrei Gorchacov morre ao mesmo tempo que o seu amigo Doménico se oferece em sacrifício, combustão da matéria e dos sentidos. O sol negro reconstituído no incêndio, no sacrifício humano, para quê? Para nada. O estigma da reconfiguração está na força da memória, reactivada pela arte. Assim, o artista dá a conhecer a sua missão prometaica: recordar ao ser humano aquilo que eternamente esquece. Tarkovski aumenta o índice de refracção, tornando o plano mais denso. E o sacrifício final enche-se de presságios: no campo escuro, eclipsadas, as mulheres russas estão aparentemente imóveis, mas recolhidas e apreensivas como os animais. Tanta quietude debaixo dessa estranha esfera estelar! À qual Andrei nunca mais regressará.
Belo texto, Godinho.
ResponderEliminarSó uma rectificação (eu sei, é um preciosismo): o "Nostalgia" não é de 1986 (desse ano é o "Sacrifício), mas sim de 1983.
Abraço,
Victor Afonso
Obrigado pelo reparo, Victor. Já inseri a correcção.
ResponderEliminar