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domingo, 1 de abril de 2007

Ratos - 1

Chama-se "Ratos". Uma pequena peça de teatro "série B" que acabei de criar. Para quem tem acompanhado a rubrica "Crimes Exemplares", mantida neste blogue, não será difícil imaginar a transposição do absurdo e de uma violência paródica, aí desenvolvidos, para uma ambiência cénica. Trata-se pois de uma história politicamente incorrecta, a partir de fragmentos aparentemente isolados. Onde certos fantasmas presentes na ordem do dia são devidamente remetidos ao jogo de espelhos de onde procedem. Numa sucessão de imagens cruas e carregadas de um onirismo corrosivo.
Com início neste post, o texto será aqui apresentado - em estreia absoluta - por episódios. Que serão editados pela ordem respectiva e fazendo cada um remissão para o anterior.

***
Personagens: Voz, Coro de quatro vozes, Homem, Condutor, Sr. Verde, Rapariga, Maria, Prof. Verde, Dr. Verde, Ana, Mário

1.
(Escuro. Ouve-se um zumbido constante, como o som próprio de uma cidade.)
VOZ
A mente é um lugar fantástico para vagabundear quando se está ausente. (Pára o zumbido.)
VOZES (OFF)
Quem está aí? Quem avançou até aqui? Tu, aí no meio!
VOZ
Eu? O que querem vocês? Sim, já fiz tudo, se querem saber. Aqui está o meu relatório para vos mostrar.
VOZES
Estamo-nos nas tintas para o que tu fizeste. Agora está sossegado e nem um pio!
VOZ
Mas ainda não sei onde estou, nem para onde ir. Indiquem-me um lugar sob este manto escuro, dêem-me essa orientação. Mas antes, digam-me, por favor, qual é exactamente o nosso tipo de relação?
VOZES
A mente é sublime, sim, mas aqui não temos tempo para jogos estúpidos, seu idiota.
Não queríamos ir por aí, mas o que virás a ser é a maior das incertezas. Foi a ti que e aos teus enigmas que banimos, desta mancha, por todo o lado. Mas acende as luzes e trá-las para aqui! Vamos! (Luz geral no palco)

2.
HOMEM
Eu vi a luz! Foi Deus quem pressenti, na sua nudez e pureza. Estou salvo! Conseguem vê-lo também? Aquela luz? Como me deleitei nela, meus irmãos! Fora a Vaidade! Tagarelice, não te conheço! Vai de retro ó personagem! Sai aparência que te acoitas dentro de mim, como um bobo cruel! O teu artifício acorrenta-nos todos ao Diabo! Fora! Fora!
VOZES (OFF, em coro) (imitando, parodiando)
Fora! Fora! Seus cães raivosos. Vamos! Voltem às vossas jaulas. Fora! Fora! Suas bestas delirantes, saiam de vez do nosso palco.
HOMEM
Que desgraças se aproximam! Quantas catástrofes vos esperam, servidores de Satã. Concede-me o teu refúgio, ó Senhor! Orarei para que os tires a todos da minha vista!
VOZES
Pobre rato insignificante! Seu idiota! Deus está morto, para todos os efeitos. E nós, somos simples figuras de porcelana, num disco suspenso do nada, em vertiginoso rodopio numa pista de dança!
HOMEM
Servidores das trevas, fora, fora da minha vista! Meu Deus, peço-vos, dai-me passagem para o vosso reino, através do mar. E longe do mundo, a ele renunciarei.
VOZ 1
Ah ah ah!
VOZ 2
He He!
VOZ 3
Ho Ho!
VOZ 4
O mar!!! Ah ah ah!
VOZES (em coro)
Gostávamos mesmo de ver tal coisa! És muito crente, mas já estás atrasado para o teu comboio! E não te esqueças do guarda-chuva, porque parece que vai chover…
HOMEM
A mente é um local mal frequentado. Pergunto a mim mesmo, ó Senhor, qual é o preço do bilhete? (Escuro)

3.
(Plano de uma grande estação de autocarros, em vídeo)
CONDUTOR
Bilhete para onde? Isso depende. Ora deixa cá ver: são € 12,00 para Braga e € 15,00 para Cascais e € 400,00 para o Ganges, mas só aos fins de semana…
HOMEM
É bastante caro, digamos, para uma tão longa viagem rumo à salvação... O que sugere você? A esse preço quero vista para o mar!
CONDUTOR
Mesmo ao cimo da Areosa , vive uma rapariga chamada Mariana, num castelo. Já não tem pai nem mãe. Está o tempo todo em casa, sozinha, acompanhada dos seus 900 amigos online…Acredite, a vida dela é deveras triste.
HOMEM
Vem mesmo a calhar! Só espero que não seja caprichosa, mas mesmo assim não me importo. Indeciso como sou, eu e ela voaremos mais alto do que um vulgar idiota poderá tentar.
CONDUTOR
Isso soa-me que nem gingas! Estou realmente contente ao ver que fez a sua escolha. (cantarolando) Eis que a hora é de largar, pois aquele apito vai soar! (aparte) E só espero que ela o receba de braços abertos...
HOMEM
Obrigado caro senhor, não é habitual ser aconselhado por alguém de forma tão correcta.
CONDUTOR
Ouça, vai mesmo agora partir o autocarro para a Areosa! Corra, depressa! Não há mais nenhum esta noite.
(O Homem corre à pressa para o autocarro.)

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