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quinta-feira, 2 de novembro de 2006

O teste

Pedro Magalhães publicou recentemente no "Público" um artigo onde, a propósito de uma sondagem realizada sobre a despenalização do aborto, chama a atenção para a motivação contraditória da resposta fornecida pelos inquiridos numa sondagem. O texto está disponível no "Outras Margens". Tendo como ponto de partida a obra "The nature and origins of mass opinion", de John Zaller, PM desenvolve uma ideia, a meu ver, deveras acertada: "a maior parte das pessoas não tem verdadeiras opiniões seja sobre o que fôr". Em vez disso, dispõem abundantemente de predisposições e considerações. Como é sabido, já os gregos desvalorizavam a opinião. Platão opõe a crença ou opinião ("doxa", em grego) ao conhecimento. A crença é um determinado ponto de vista subjectivo. O conhecimento é crença verdadeira e justificada. Não sei se foi com base neste postulado epistemológico que o autor chegou à conclusão referida. Certo é que, ao estabelecer-se uma dualidade - como fez Platão - a finalidade mais óbvia é a desvalorização de um dos termos da comparação. Neste caso, a "doxa". De qualquer modo, o preconceito subsistiu, assumindo uma relevância suplementar no caso dos estudos de ... opinião.
Centremo-nos nas duas categorias referidas. Segundo PM, predisposições são "crenças e valores muito genéricos, tais como o igualitarismo, o individualismo ou os sentimentos de identificação com os interesses de um grupo", que revelam sérias dificuldades de conversão linear numa tomada de posição face a uma questão concreta. As considerações, por sua vez, são "argumentos a favor ou contra uma determinada posição, que vão sendo recolhidos pelos indivíduos através da exposição aos meios de comunicação social." O autor chama a atenção para a existência de considerações "de sinal oposto" nos media, o que é natural em sociedades abertas. No entanto, no momento em que o inquirido emite a sua escolha, esta é determinada por factores conjunturais: a forma como a questão é colocada, o "animus" do inquirido, a forma mais ou menos impressiva como entrou em contacto com desenvolvimentos recentes respeitantes ao assunto em causa, etc.
Ora, o aborto é um tema em que as respostas não são, por regra, lineares. Está em causa a forma como o Estado irá regular a esfera pessoal dos cidadãos. Aqui, as opções de regulação, de que fala PM, "não se medem em quantidades e os interesses envolvidos são difusos." Trata-se, sobretudo, de valores fundamentais que "podem ser defendidos ao mesmo tempo pela mesma pessoa". Sendo que a ciência ainda não deu resposta a algumas questões que poderiam atenuar os diferendos ao nível da opinião pública. Eis pois um caso paradigmático, onde as considerações expostas no texto citado têm um vasto campo de aplicação.

2 comentários:

  1. Há duas outras categorias usadas em abundância:
    1º a suposição ("eu não vi/fui/li, etc., mas"...seguindo-se duas horas de alegações
    2º a premonição ("estou com um pressentimento que isto não vai resultar", ou "eu na altura bem avisei de que"...)
    E não acaba aqui.

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