A festa durava há horas e parecia ter atingido o seu auge. Os convivas iam abandonando aos poucos uma espécie de formalidade transportada do quotidiano e difícil de romper. Onde a polidez calculada dava lugar ao inesperado. Todavia, ele sentia-se perdido no meio de tudo aquilo. Não que negasse uma parte ínfima do mundo - no centro da qual se encontrava - um mundo cujo poder e forças experimentava. Não que lhe fossem estranhos os perfumes inconfundíveis trazidos pela noite. Tudo se devia à sensação de não ver senão o vazio, onde esperava encontrar o esquecimento. De repente, deixou de entender o que os outros diziam. Parecia que falavam uma língua misteriosa e exótica, a que lhe era vedado o entendimento. Parecia que tudo aquilo tinha deixado de fazer sentido. Parecia que havia sido escolhido para uma provação que até ali tinha sempre partido de si. O desconforto paralisava-o. Saiu. No hall de entrada, mal reparou no olhar da rapariga do bengaleiro. Pensou convidá-la para dançar, mas limitou-se a recolher o casaco. Ainda a ouviu dizer: "Só é nosso o que esquecemos". No exterior, o ar fino por momentos tranquilizou-o. Morava no mesmo quarteirão, duas ruas à frente. Mas a cidade parecia decidida a contar-lhe os seus segredos mais funestos. Logo à frente, deparou-se com um rasto de armaduras gigantescas, ensanguentadas, espalhadas pela rua. Um coro de gemidos acompanhava as proporções desumanas do cenário. Desembocou numa praça cheia de gente, como se fosse já de dia. Percebeu que estava perdido. Perguntou a alguém o caminho para casa. Que, afinal, era logo "ali", numa rua perpendicular. Só que as coisas não eram assim tão simples. Mal saiu da praça, deu conta do aspecto bizarro das casas. As cores tendiam para o escuro. As pessoas confluiam para uma espécie de túneis entre os edifícios. Entrou num deles. A passagem era estreita. Parecia destinada a contorcionistas e não a pessoas comuns. Por fim, a custo, conseguiu chegar ao outro lado. Percebeu que estava ainda na parte alta da cidade e que precisava de descer, para chegar ao destino. Viu então uma espécie de corrimão que serpenteava pelas casas da encosta, com assentos individuais, que faziam um barulho arrepiante ao serem accionados. Como um funâmbulo, tomou lugar num desses assentos, iniciando a descida. À medida que a velocidade aumentou, deu logo conta que não conseguiria deter o mecanismo. Ouvia os risos dos "companheiros " de viagem, os ruídos próprios da cidade, mas agora ampliados até atingirem uma cacofonia monstruosa. As imagens sucediam-se a uma velocidade vertiginosa. Já nem pensava "como" aquilo iria acabar, mas "quando". Foi então que acordou, dentro do sonho. E só acordou fora dele quando, olhando para o lado, na penumbra adivinhou a presença da rapariga do bengaleiro.
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Gil, estes crimes estão a ficar cada vez mais sofisticados...
ResponderEliminarCá pra mim foi o mordomo...lol
ResponderEliminarQual será o próximo?
ResponderEliminarXana:
ResponderEliminar"Os Três Pastorinhos", no Bairro Alto, foram a inspiração desta história. Lol