Da lavra de José Carlos Alexandre, saiu esta semana no jornal "O Interior" uma crónica com o subtítulo a urgente educação dos intelectuais subdesenvolvidos. Na sua saga em defesa do gosto do bom povo, o autor fustiga violentamente os tais intelectuais, com epítetos como: "luminárias", "artistas de meia tijela", "snobes insuportáveis". Estes são, segundo ele, os sinistros representantes de uma elite obscura, que pretende educar o povo com "alta cultura" e que justifica o atraso do país com o facto provado (pelo autor) de que o povo não está interessado em "alta cultura" e prefere futebóis, fados e religião (sic). Acrescenta ainda que as elites que temos não prestam, "tomaram decisões desastrosas", desde o liberalismo, supõe-se, e que "nos conduziram ao triste estado em que estamos". Outras elites de países "civilizados" são, segundo o autor, mais tolerantes com os gostos do respectivo "povo". Dá o exemplo da Alemanha, onde, informa, o Volkgeist se resume à "cerveja, ao futebol, ao cabaré e outro qualquer entertenimento pimba" (sic). Termina de modo assertivo, com o discurso habitual de que o que interessa é "dar" a todos o acesso à "alta cultura", sem a intervenção dos tais intelectuais subdesenvolvidos. A quem estará vedada qualquer tutela sobre os gostos das massas, pois "não têm nenhum mandato para o efeito", ainda por cima com o rico dinheirinho dos contribuintes. Alexandre consegue mesmo vislumbrar uma "ambição estalinista" nestes degenerados.
Acreditem que isto é mesmo verdade. Está escrito, como soe dizer-se no jargão burocrático. Vou-me então cingir à questão das elites, pois sobre políticas culturais, sobre as responsabilidades do Estado e autarquias na matéria e sobre uma estratégia nesse domínio para a Guarda, já aqui e aqui exprimi o meu pensamento. Para além do artigo publicado na edição do mesmo jornal de 7 de Setembro.
Em primeiro lugar, devo dizer que, de facto - e aqui acompanho o cronista - há demasiada arrogância e demasiado narcisismo por parte de alguma intelectualidade, próxima ou não do poder e, sobretudo, no mundo artístico. Esse pedantismo, que alguns confundem com excentricidade, é inversamente proporcional à existência do verdadeiro talento, ou de uma genialidade que não busca aprovação imediata. O mesmo se aplica ao universo literário. Este funcionando num complicado sistema de capelinhas em regime de troca de laudas, apoiado em grande medida nos media. Mas essa é uma outra história, que merecerá um tratamento à parte.
Em segundo lugar, independentemente de o texto ter pouco de liberal e muito de populista, qual é a sua função prática? Facilmente se adivinha: estamos em presença de uma proclamação de conquista territorial, uma cobertura "ideológica" apta a caucionar a gestão medíocre e popularucha do actual executivo camarário. Sob a forma de recados cirurgicamente dirigidos. Adiante. Todavia, subsiste a tal dúvida razoável: a que elites se refere o texto? Às políticas? Às económicas? Às culturais? Não se sabe. O cronista está igualmente certo, convenhamos, sobre a escassa qualidade das elites nacionais. Mas a razão é outra. É que, desde a Regeneração, a notoriedade pública em Portugal passou a existir em função de factores estranhos ao mérito, à competência, ao dinamismo, à coragem. Hoje em dia é uma questão puramente mediática, aleatória. Mas julga o autor que essas elites estão preocupadas com o povo? É claro que não. Procuram até distinguir-se o mais possível desse povo, ridicularizando aqueles que com ele mantém a ligação, as tradições e os hábitos. O fenómeno do "Independente" tem muito a ver com isso: uma auto-proclamada vanguarda que se limitou a reunir, distribuir e dar novo brilho a uma proverbial fraqueza nacional: o ressentimento. É dessas elites que fala o autor? Ou não será antes o ponto de vista de uma elite em formação, sobre outra que nem sequer funciona como tal? Onde o ressentimento de quem construiu uma identidade à custa do esvaziamento interior vem agora buscar a fusão desesperada com a "situação". Para ter carta branca para depôr aqueles que se recusam ao embuste: alguns artistas, alguns intelectuais, alguns que não abdicam da sua dimensão cívica, todos aqueles, enfim, cujo programa de acção não dispensa a fantasia, a inutilidade, a insubmissão?
Em terceiro lugar, qual é , no texto, o lugar da "alta-cultura"? É simples, parece ser sinónimo de cultura erudita. Ora, sabe-se que a ópera era muito popular, mesmo em Portugal, na última década do séc. XIX e nas primeiras do seguinte. Sendo-o agora menos, será por esse facto "alta cultura"? Os espectáculos de ballet e de música erudita eram acontecimentos com uma adesão impressionante nos países do Leste. Então, o que "cá" seria "alta-cultura", "lá" perderia essa qualidade? E na Alemanha, já que falou nisso, a música é incomparavelmente mais popular do que o futebol. A pergunta anterior repete-se. Mas saberá o autor porquê? Porque ALGUÉM tornou isso possível. Porque as entidades públicas não se demitiram das suas funções, no apoio à criação e divulgação culturais. Porque muitos "intelectuais subdesenvolvidos" deram o seu contributo profissional ou artístico, para que isso fosse possível. Da mesma forma que no nosso país já o fizeram e irão continuar a fazer. A questão não está pois em "educar" o público, mas em PROPÔR alternativas consistentes, aptas à constituição de vários públicos, à criação de hábitos de fruição da cultura. Sem perder de vista que a definição dos gostos e afinidades vai muito para além da simples oferta.
Em quarto lugar, o cronista fala do povo como de uma massa infantilizada, ao gosto do Estado Novo. Que urge pôr a salvo da contaminação das tais elites que refere. De uma assentada, esvazia o verdadeiro significado da cidadania, da arte como uma experimentação de diferentes percepções do mundo. Fala das massas, entidades passivas, mas esquece-se dos indivíduos e das suas infinitas motivações para a fruição e a criação culturais, que merecem a atenção do Estado, directa ou indirectamente. Com algum paternalismo, refere-se ao "povo" como uma categoria abstracta, convenientemente desresponsabilizada, com uma identidade deficitária, confinada ao seu mundo "castiço", inóquo. Qualidades essas que os vigilantes nocturnos, os fautores da neutralidade se encarregariam de assegurar, ou seja, disfarçadamente policiar.
O fascismo começou assim.
Acreditem que isto é mesmo verdade. Está escrito, como soe dizer-se no jargão burocrático. Vou-me então cingir à questão das elites, pois sobre políticas culturais, sobre as responsabilidades do Estado e autarquias na matéria e sobre uma estratégia nesse domínio para a Guarda, já aqui e aqui exprimi o meu pensamento. Para além do artigo publicado na edição do mesmo jornal de 7 de Setembro.
Em primeiro lugar, devo dizer que, de facto - e aqui acompanho o cronista - há demasiada arrogância e demasiado narcisismo por parte de alguma intelectualidade, próxima ou não do poder e, sobretudo, no mundo artístico. Esse pedantismo, que alguns confundem com excentricidade, é inversamente proporcional à existência do verdadeiro talento, ou de uma genialidade que não busca aprovação imediata. O mesmo se aplica ao universo literário. Este funcionando num complicado sistema de capelinhas em regime de troca de laudas, apoiado em grande medida nos media. Mas essa é uma outra história, que merecerá um tratamento à parte.
Em segundo lugar, independentemente de o texto ter pouco de liberal e muito de populista, qual é a sua função prática? Facilmente se adivinha: estamos em presença de uma proclamação de conquista territorial, uma cobertura "ideológica" apta a caucionar a gestão medíocre e popularucha do actual executivo camarário. Sob a forma de recados cirurgicamente dirigidos. Adiante. Todavia, subsiste a tal dúvida razoável: a que elites se refere o texto? Às políticas? Às económicas? Às culturais? Não se sabe. O cronista está igualmente certo, convenhamos, sobre a escassa qualidade das elites nacionais. Mas a razão é outra. É que, desde a Regeneração, a notoriedade pública em Portugal passou a existir em função de factores estranhos ao mérito, à competência, ao dinamismo, à coragem. Hoje em dia é uma questão puramente mediática, aleatória. Mas julga o autor que essas elites estão preocupadas com o povo? É claro que não. Procuram até distinguir-se o mais possível desse povo, ridicularizando aqueles que com ele mantém a ligação, as tradições e os hábitos. O fenómeno do "Independente" tem muito a ver com isso: uma auto-proclamada vanguarda que se limitou a reunir, distribuir e dar novo brilho a uma proverbial fraqueza nacional: o ressentimento. É dessas elites que fala o autor? Ou não será antes o ponto de vista de uma elite em formação, sobre outra que nem sequer funciona como tal? Onde o ressentimento de quem construiu uma identidade à custa do esvaziamento interior vem agora buscar a fusão desesperada com a "situação". Para ter carta branca para depôr aqueles que se recusam ao embuste: alguns artistas, alguns intelectuais, alguns que não abdicam da sua dimensão cívica, todos aqueles, enfim, cujo programa de acção não dispensa a fantasia, a inutilidade, a insubmissão?
Em terceiro lugar, qual é , no texto, o lugar da "alta-cultura"? É simples, parece ser sinónimo de cultura erudita. Ora, sabe-se que a ópera era muito popular, mesmo em Portugal, na última década do séc. XIX e nas primeiras do seguinte. Sendo-o agora menos, será por esse facto "alta cultura"? Os espectáculos de ballet e de música erudita eram acontecimentos com uma adesão impressionante nos países do Leste. Então, o que "cá" seria "alta-cultura", "lá" perderia essa qualidade? E na Alemanha, já que falou nisso, a música é incomparavelmente mais popular do que o futebol. A pergunta anterior repete-se. Mas saberá o autor porquê? Porque ALGUÉM tornou isso possível. Porque as entidades públicas não se demitiram das suas funções, no apoio à criação e divulgação culturais. Porque muitos "intelectuais subdesenvolvidos" deram o seu contributo profissional ou artístico, para que isso fosse possível. Da mesma forma que no nosso país já o fizeram e irão continuar a fazer. A questão não está pois em "educar" o público, mas em PROPÔR alternativas consistentes, aptas à constituição de vários públicos, à criação de hábitos de fruição da cultura. Sem perder de vista que a definição dos gostos e afinidades vai muito para além da simples oferta.
Em quarto lugar, o cronista fala do povo como de uma massa infantilizada, ao gosto do Estado Novo. Que urge pôr a salvo da contaminação das tais elites que refere. De uma assentada, esvazia o verdadeiro significado da cidadania, da arte como uma experimentação de diferentes percepções do mundo. Fala das massas, entidades passivas, mas esquece-se dos indivíduos e das suas infinitas motivações para a fruição e a criação culturais, que merecem a atenção do Estado, directa ou indirectamente. Com algum paternalismo, refere-se ao "povo" como uma categoria abstracta, convenientemente desresponsabilizada, com uma identidade deficitária, confinada ao seu mundo "castiço", inóquo. Qualidades essas que os vigilantes nocturnos, os fautores da neutralidade se encarregariam de assegurar, ou seja, disfarçadamente policiar.
O fascismo começou assim.
Bem esgrimido. Pela quantidade de disparates do cronista, é fácil adivinhar que é prof. no IPG.
ResponderEliminarPois, mas o prof. do IPG., assume-se publicamente e tem direito à sua opinião.
ResponderEliminarO anónimo é "um espécime cultíssimo informado até à medula da tecla, perito múltiplo e de gatilho mais rápido que a sombra do Lucki Luke".
Tendo como exemplo o post das 19:32 e, como já atrás informei, não serão doravante publicados comentários de ordem puramente pessoal, alheios ao enunciado do post comentado. Muito menos aqueles que se dirijam a terceiros. O referido comentário só é mantido para que o seguinte não perca o referente.
ResponderEliminarEste blogue é um local de troca de ideias e de sonhos. E assim irá continuar.
Obrigado
Este tema não se esgota aqui. Não creio que o autor do artigo tenha sido paternalista quanto às escolhas "naturais" da população. Penso é que andou demasiado atrás dsquilo que os políticos gostam de ouvir...
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