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sábado, 15 de julho de 2006

O Riso de Céline

«A razão! É preciso ser louco. Assim, com tudo castrado, não é possível fazer nada. Dão-me vontade de rir. Veja-se aquilo que os contraria: nunca ter havido quem conseguisse fazer um filho "racionalmente". Não há remédio. Para haver criação é preciso haver um momento de delírio

Louis-Ferdinand Céline, Ele, Rabelais, Falhou o Golpe

O particularismo da voz megalómana, voz delirante, de Céline, está em mostrar o absurdo que há em não termos fé nos sentidos, fé nas emoções. A grande idolatria que é o termos medo das sensações... medo de sentir. Com o seu delírio megalómano, procurava Céline esmagar o medo no próprio lugar em que ele mais facilmente se insinua, medo que se apodera das sensações, medo que erradamente tomamos por a verdade das sensações, medo da voz que nelas julgamos pressentir. Precisamente a tirânica voz do Verbo, essa voz que era já o demónio de Sócrates e aquela que foi depois o instrumento do poder sacerdotal dos evangelistas, esses homens capazes de mudar a «direcção do ressentimento». Mas também a voz dos gramáticos encartados e a voz presente nas boas orações literárias de todos os dias santos.

Lírico como jamais houve, homem-pássaro sem igual, Céline recusava a idolatria, e a do Verbo mais do que qualquer outra. Se escrevia era para se poder vingar da falsa «eloquência natural», para se desforrar do palavreado insidioso com que o Diabo se disfarça de bom Deus. «Temo que não nos libertemos de Deus enquanto continuarmos a acreditar na gramática», escreveu um dia Friedrich Nietzsche. Céline, esse, poderia ter dito: «Temo que não nos libertemos da gramática enquanto continuarmos a acreditar no Verbo». Eis uma equação que o sr. doutor Destouches não enjeitaria.

Escrevendo para «ganhar a vida», Céline cantava. Céline assobiava. Para isso dispunha ele de uma técnica incomum, técnica forjada numa gaguez incomparável com a qual torcia as boas maneiras da língua. Rabelaisiano, desconfiado que era das “boas sensações”, das sensações conformes ao Verbo, ninguém como ele, larápio e fugitivo, atacou tanto os poderes instalados no edifício central da sua língua materna. Ninguém como ele desarmou todas as manhas e perfídias que denunciam o outro lado do seu bom-tom: «Um tom igual ao dos liceus, um tom igual ao do jornal de todos os dias, um tom igual ao das discursatas, um tom igual ao das declarações do Parlamento, ou seja, um estilo verbal, talvez eloquente, mas em todo o caso nada emotivo». «Words, words and words»... «tics, tics et tics»...

Foi sobretudo pelo modo como empregava o argot, pelo modo como passava o «falado» a «escrito», pelo modo, enfim, como nessa transposição encontrou a única forma possível de exprimir a emoção (para ele a fonte de onde brotam os actos essenciais da vida), que Céline se tornou conhecido. Conhecido, sim, mas jamais amado: «La gloire ne va qu’aux morts, n’est-ce pas. Les vivants n’arrivent qu’à l’Académie». Sob este aspecto, Céline era profundamente mal-educado, obsceno até, ele que, exigente, cruel, vigilante, submetia as palavras a uma intensa tortura de parto. Mas Céline nunca quis contar, ele quis apenas fazer SENTIR... Eis a fórmula para o seu generoso conceito de estilo. Com ele, é a própria emoção que se transforma imediatamente em carácter. Não se pode pedir muito mais...

Se, por acaso, Céline leu Beckett deve ter rido e sofrido com a imaginação do irlandês. E se a grande crença de Kafka – e o que, por meio dela, permite ligar o judeu de Praga ao jesuíta de Dublin – é a consciência de que há uma «culpa» que nos é exigida em troco do saber que «há qualquer coisa em nós que é indestrutível», ou, dito à maneira do irlandês, que subsiste, apesar de tudo, «um continuar quando não se pode continuar», para Céline a paciência é uma virtude de beatos. De beatos cansados das emoções que apenas a vida – e não o Verbo – pode justificar. Precisamente a Santa Paciência do Verbo que ensina às ovelhas a boa maneira de balir... «“No princípio era o Verbo.” Não! No princípio era a emoção. O Verbo veio depois, para substituir a emoção, tal como o trote substitui o galope, mas o galope é que é a lei natural do cavalo; ao trote obrigamo-lo nós».

São conhecidas as birras de Céline contra a dialéctica. Contra o arrazoado. Contra as ideias. Contra a propaganda. Neste aspecto, o seu lirismo é o avesso aristocrático do sermonismo democrático e universal de Saúl de Tarso. Também por isso é Céline contra tudo aquilo que não incarna. Contra si-próprio, contra Céline, o histrião preciso. Clínico, conhecedor, quente, eis Céline, o construtor de emoções. Nada, em suma, que nas profundezas da língua se agitasse, lhe escapava: nenhuma maleita, nenhum pus, nenhum micróbio, nenhum tumor, nenhum cancro. Prosa natural e impressiva, prosa também homeopática, a do doutor Louis-Ferdinand Destouches, prosa contra o Verbo de um médico obcecado com a saúde das emoções, pluma lírica emotiva de um naturalista empenhado em curar aquelas infecções da língua que tornam doente a sensação da palavra.

Puritano como era, quando Céline ria, ria para aliviar a garganta, para desgaguejar a emoção, para lhe apagar, por instantes, as reticências. Para evitar o bem e o mal. Para recusar o bem e o mal do Verbo, para recusar, no fundo, o Pecado Original, «não é verdade?», diria ele. Emoção Plena. Inteira. Capaz. Viva.

António Bento, "Boca de Incêndio" nº3, Dez. 2005

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