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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

Hannah Arendt
A Condição Humana
Tradução: Roberto Raposo
Ed.: Relógio d’Água


Hannah Arendt, conhecida pela sua obra sobre o totalitarismo – vd. a série de ensaios biográficos Homens em Tempos Sombrios – tem merecido justamente a atenção, graças ao número de obras traduzidas para português, pela sua produção especificamente filosófica. A culminar, aí está e recente edição da sua obra de referência, A Condição Humana.
Para lá do inegável prazer que a escrita de Arendt proporciona, pelo seu brilho e despojamento, haverá que tentar perceber quais são as teses realmente filosóficas, e não meramente históricas, que são propostas. Ora, à luz deste requisito, a obra de Arendt deixa-se resumir numa só palavra: pluralidade. E este conceito hasta para situar o programa de Arendt, explicitamente enunciado em The Life of the Mind (1973-75): lutar nas fileiras daqueles que tentam desmantelar a metafisica. Esta desconstrução passa, na faceta política da metafísica, por arremeter contra o modelo da acção como aplicação de saber, com a consequente anulação da acção na sua especificidade, anulação essa que encontra a sua primeira e decisiva figura no filósofo—rei de Platão.
Tudo o que Arendt diz sobre labor e trabalho, para usar os termos da tradução portuguesa, constitui apenas degraus numa escada cujo topo é a acção. A pluralidade é o conceito que permite salvar a acção enquanto tal, pois não desvaloriza a existência dos homens como experiência aberta. Ora, Arendt julga encontrar essa pluralidade em acção numa polis grega, supostamente originaria e não infectada pela metafísica. Esse espaço em que todos são iguais e lutam discursivamente por uma proeminência que requer a liberdade e a igualdade dos outros para se afirmar e ser reconhecida constitui a esfera pública digna do nome.
Mas, se Arendt evita a vizinhança de Nietzsche para quem o problema estava resolvido — não há civilização sem escravos —, também não subscreve as palavras de W. Benjamin - todo o documento de cultura é um documento de barbárie. De tal modo que fica sem qual quer ponto de apoio para avaliar as conquistas da modernidade, e, pressentindo a falta de critério, não enfrenta o problema da realização da sua concepção de acção nas condições da sociedade moderna. Pelo contrário, subscreve a tese de um desenvolvimento negativo no que respeita à acção e, simultaneamente, reconhece o progresso das condições de vida e políticas das massas. Problema que reaparece na noção, cara a Arendt, do historiador como espectador dos feitos humanos, doador de sentido à acção e perpetuador da glória do poder.
Esse dever abstracto da memória não consegue salvar nenhum sentido, mas também não se entrega, mais uma vez, à esteticização que Nietzsche apregoava como sentido do sem sentido, substituindo o historiador pelo poeta que tem de cantar depois das conquistas. A Condição Humana fica assim como mais um importante relatório sismográfico do terramoto que Nietzsche trouxe consigo.

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