Recordo com orgulho os dias gloriosos, mas nem por isso deixo passar em silêncio as recordações de um assombroso despertar das pedras, a sua fugaz alegria exuberante, a sua plenitude indomável, que, ao serem recordadas, me faziam chegar as lágrimas aos olhos, contagiado por esta piedosa grandeza do granito, pelo silencioso regresso dos que em tumulto um dia partiram, como crianças estendendo as mãos ao acaso, quando a luz se lhes dirige do interior dos olhos para o mundo, aqui imaginamos sempre poder voar, é mais fácil, mas depois da festa convocada, é-nos mais precioso o salto desastrado do que a segurança ao longo do caminho já traçado, não, aqui a terra avara não nos deixa ficar demoradamente sentados à janela, invadidos por uma alegria serena, à espera que a vida inteira se desbobine do fuso em fios dourados, esse brilho é para outras latitudes, às vezes certificamo-nos no espelho de que o nosso encontro com a cidade não foi uma ilusão, pois à medida que a montanha nos aproxima do mistério e da poeira oculta, também nos ensina esta espécie de envergonhada virtude dadivosa em que nos recolhemos, do outro lado, agitando as suas penas, a cidade, demasiado púdica para instrumentar a sua memória com versos obscenos, aqui o arado da gleba ainda revolve a nossa memória, povoando-a de sombras, vagas e cinzentas, é altura do cortejo das máscaras, os homens figurando como aves e as mulheres envergando trajos de eras passadas, os bobos pulando na árvore dos loucos, as flautas esguias, as cítaras sibilantes das corujas das torres, os rabecões bramadores dos galos silvestres e, no dia seguinte, como um segredo pelos séculos guardado, o jardim emergir dos cristais, das profundeza da terra impiedosa, em estreitos socalcos, a cidade começar a sorrir, colocar de mansinho a mão sobre a minha boca, tão suavemente que, no silêncio envolvente, só conseguirei distinguir a respiração que se insinua por entre os meus dedos…
Texto publicado no jornal O Interior, em 27 de Novembro de 2003, no suplemento “Guarda, 804 anos”
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