Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Fugas

Hoje começam as festas da cidade na Guarda. Ou seja, um pesadelo pimba renovado e que nada acrescenta à cidade. Mas que, insistentemente, mobiliza uma comissão de festas organizada como se a Guarda fosse mais uma aldeia a precisar de mordomos. Altura ideal para uma escapada até um verdadeiro festival musical, e não só, em ambiente rural. Trata-se do "Trebilhadouro", edição 2009. O evento decorre numa aldeia abandonada na Serra da Freita, perto de Vale de Cambra, de 31 de Julho a 2 de Agosto. E que, tendo sido requalificada graças ao envolvimento da autarquia e de um grupo de teatro locais, é o palco para uma iniciativa anual que já ultrapassou as fronteiras. Durante três dias, haverá música, teatro, circo, exposições, oficinas, passeios pedestres... E a aldeia, só por si, é um mimo.

Stalker

terça-feira, 28 de julho de 2009

O desígnio

Soube-se, esta semana, que o cabeça de lista pelo PS no círculo da Guarda será Francisco Assis. O nome foi indicado pela direcção nacional do partido, após uma série de "auto-nomeações" a que Sócrates terá decidido pôr fim. Desta vez, percebeu-se o porquê da tradição da imposição, pelos directórios dos vários partidos, de cabeças de cartaz na Guarda. Ou seja, actores convidados para um palco que não é o seu e decorando um guião que nunca irão usar. E isto porque as estruturas locais abdicaram de apresentar nomes credíveis, que não resultem de uma cooptação numa sala fechada. Nomes onde pese a competência política, é claro, mas em que a estatura cívica, a grandeza cultural, ou uma particular visão audaciosa não fiquem para trás. O que acontece, quase sempre, é a notoriedade afirmada em exclusivo nos aparelhos, a simples persistência ou os lances florentinos, virem a ser recompensados com uma sinecura parlamentar. Tudo se passa em circuito fechado. O cobiçado "veludo" passa de mãos em mãos, até que chega a altura de ser disputado. Nesse momento, já alguém se apoderou dele sem apelo nem agravo. Portanto, para alcançar a elegibilidade, basta percorrer com êxito uma série de etapas, um conjunto de degraus ziquezagueantes que conduzem, quase de certeza, ao resultado pretendido. Repare-se que, neste processo, o mérito realmente político dos putativos candidatos pouco interessa, mas sim a sua competência "processual" para triunfar internamente. Não admira pois que, sobretudo no caso do PS, a direcção nacional recorra frequentemente aos serviços de figuras de topo, a necessitarem de rodagem e de uma tribuna episódica, para colmatar os Albanos que lhe são sazonalmente apresentados.
O acto eleitoral é o momento supremo onde é manifestada a vontade contratual dos cidadãos em relação aos seus representantes. Historicamente, pelo menos em Portugal, houve sempre duas formas de adulteração dessa escolha: pelo lado da definição do universo eleitoral e pela subversão dos mecanismos da representação. A ilustrar o primeiro caso, basta referir o sufrágio censitário do liberalismo, a exclusão dos analfabetos da 1º república, pelo PRP, e a contingentação administrativa do recenseamento, durante o Estado Novo. O expediente destinava-se, respectivamente: à exclusão dos elementos radicais setembristas e do "povo miúdo", de modo a assegurar o perpétuo girar de cavalheiros vitorianos representando as duas ou três facções do costume; à exclusão das massas rurais e do proletariado, afastando-se assim quer o voto católico e tradicionalista, quer o voto socialista; à fixação de um eleitorado funcionalizado e obediente. Do outro lado, ressalta a inexistência de uma verdadeira responsabilização intuitu personae dos eleitos pelos seus constituintes. Seja qual for o modelo de contabilidade eleitoral seguido. Neste particular, a marcação de audiências periódicas onde os deputados recebem as reclamações dos eleitores do círculo respectivo, como acontece no Reino Unido, parece um cenário de ficção científica. Portanto, é tradição nacional a distribuição dos lugares ser tão errática como a diluição do vínculo representativo.
Francisco Assis estará pois na Guarda, durante a vileggiatura eleitoral. A abnegação com que se dispôs a aceitar o "desterro" é apropriadamente franciscana. Evidentemente, não é o político Assis que está em causa. Até porque demonstrou muita coragem, onde outros não a tiveram, no infâme episódio de Felgueiras. Até porque o próprio confessou a transitoriedade do seu desempenho, afirmando continuar o Porto a ser o seu centro político. Lamenta-se é a Guarda não ter mais nada que "oferecer" às instâncias partidárias decisórias, senão os melhores golpistas da temporada. Deparando-se os eleitores com uns ilustres (?) desconhecidos, recém-empossados em qualquer coisa, em busca da notoriedade pastosa das prebendas da pequena política. Encabeçados, precisamente, pela prestimosa "figura" de circunstância. Muito pouco, na verdade.

"A Aversão", de André de Melo (4ª parte)

O Director do “Europa” descia agora a rua, consumido. À transparência da sua distracção fugidia, com um olhar desperto, ia sondando o passeio.
Não faltavam rostos conhecidos do jornalismo, pela Avenida da Liberdade abaixo e acima. Não seria capaz de contratar um matador mas, se a ocasião se prestasse, iria pôr um à prova. Àquela hora, os jornalistas do “Quotidiano” vinham a decompor a feijoada pela rua abaixo com os olhos meio vidrados de álcool. Tinham ficado barrigudos e teimavam em usar aqueles bigodes revolucionários, agora pelados e grisalhos, enquanto não se compunha o salário com “ganchos” noutros jornais, e o “Quotidiano” se confinava a um esconso do salão político. Não era um certo radicalismo que os reduzira àquele canto do espectro (político). Afivelavam até uma opção moderada, quando todos eram revolucionários, em sabatinas de radicalidade, numa linha da qual ele se sentira sempre correlegionário. Tomava era a precaução de não a revelar e cuidar meticulosamente das influências de que dispunha antes de se confidenciar. Mas Roma não paga a precursores. Quanto a eles (aí vinham, em grupo, meio amparados uns aos outros, como uma cáfila) todos rodeando uma rapariga mais nova, certamente estagiária, de calças de ganga e camisa fina com as pontas atadas acima do umbigo. (ler mais)

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domingo, 26 de julho de 2009

O teatro

Coloco cada palavra na mesma luz e na mesma tonalidade de cinzento. Uma tonalidade algures entre a cor de um velho tapume e a cor de uma nuvem baixa. A diversidade é o meio onde cintila o meu espírito. A economia profundamente humana onde descrevo os meus personagens. Suspensos. Hesitantes. Amantes do jogo. Prisioneiros da cor do pormenor. Da vida derramada como aguarela. Onde os faço banhar numa bruma verbal delicadamente irisada. Seres encantadores e ineficazes. Criaturas bizantinas e patéticas. Que vão desbaratando uma existência provinciana. Encarcerados numa bruma de sonhos utópicos. Sabendo reconhecer perfeitamente o que vale a pena ser vivido. Mas atolando-se na lama de uma existência monótona. Idealistas inúteis. Sedutores por tédio. Heróis detentores de uma bela verdade humana. Fardo esse que não podem carregar nem evitar carregar. São personagens que tropeçam. Que tropeçam porque olham para as estrelas. Enquanto caminham. Que podiam sonhar, mas não governar. Que perdem todas as oportunidades. Que se furtam a qualquer acção. Que passam noites em claro. Concebendo mundos que não podem construir. São os Davids franzinos numa era de Golias rubicundos. São aqueles que nos podem resgatar. Sem condições. São eles os habitantes das paisagens desoladas. Dos salgueiros mortos nas bermas das estradas lamacentas. Dos corvos cinzentos, dilacerando os céus cinzentos com as suas asas cinzentas. Do vapor de alguma lembrança inesperada, emanando subitamente de uma banalíssima esquina da rua. Da penumbra patética. Da fraqueza encantadora. De todo um mundo cor de cinza, cor de rola. De partidas adiadas e regressos não anunciados. É deles que eu me nutro.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

De novo "As Benevolentes"

Após várias solicitações nesse sentido, segue-se a reedição de um extenso comentário que aqui publiquei, entre Janeiro e Abril de 2008, a propósito da edição da última obra de Jonathan Littel, As Benevolentes (Les Bienveillantes), sob a chancela da D. Quixote. A recensão é acrescida de um texto inédito, a propósito do filme "O Porteiro da Noite", de Liliana Cavani. O livro trata das memórias ficcionadas de Maximilien Aue, um ex-oficial nazi, alemão de origens francesas que participa em momentos sombrios da recente história mundial: a execução dos judeus, as batalhas na frente de Estalinegrado, a organização dos campos de concentração, até a derrocada final da Alemanha. Uma confissão sem arrependimento das desumanidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, que provoca uma reflexão original e desafiadora das razões do mal absoluto. A tradução é de Miguel Serras Pereira. Como poderão observar, a recensão divide-se em seis partes + extra e é editada sequencialmente.

Gavotte (1)

Acabei de ler "As Benevolentes", de Jonathan Littell (D. Quixote, 1ª edição, 2007). De resto, um livro por bastante badalado e que se tornou, em todo o lado, um fenómeno editorial. Entre nós, a primeira edição esgotou em duas semanas, como aqui é explicado. Como começar? Ao longo da uma vida, chega um momento em que se percebe que são poucas as obras literárias que nos conseguem abanar de alto a baixo, jogar connosco um lance de alto risco, embora fascinante. Quando se inicia a leitura, não se imagina sequer que, 900 páginas depois, as perguntas se avolumam à mesma cadência com que os últimos recantos da inocência se esboroam como castelos de cartas. Única condição para que uma espécie de consagração da pureza nascida da amoralidade triunfe, para além do bem e do mal. É nessa viagem que Maximiliem Aue, ex SS-Obersturmbannführer ao serviço da Sicherheitdienst, nos convida a entrar. "Nunca pedi para me transformar num assassino", começa por dizer, explicando que "o Estado é composto de homens, todos mais ou menos comuns, cada um com a sua vida, a sua história, a série de acasos que fizeram com que um dia um deles estivesse do lado bom da espingarda ou da folha de papel enquanto outros estavam do lado mau. Esse percurso só muito raramente é objecto de uma escolha, ou igualmente de uma predisposição". Está lançado o programa. O ex servidor do III Reich leva o leitor pela mão, para que testemunhe o horror sem remissão, a iniquidade sem esperança. Um cenário onde ele foi actor, da mesma forma, remota mas possível, que o leitor igualmente poderia ter sido. E de onde lhe lança para os olhos a sua vida miserável, sem subterfúgios. De fora, ficam os remorsos, os apelos à redenção e à misericórdia, tudo o que possa assemelhar-se ao mais ténue acto de contrição. Aue procede tal como o poeta Vergílio, numa nova Divina Comédia amputada do Paraíso. Todavia, enquanto o poeta se assemelha a um cicerone, Aue é o porteiro da sua memória sem nome. Enquanto Dante conseguiu construir uma alegoria moral para a sua época, para Littell era impossível fazer o mesmo com o nazismo. Não só por causa da evidência da banalidade do mal, na expressão de Hannah Arendt. Mas porque, neste caso, a violência organizada, a industria da morte e a psicopatia como marca do poder, reuniram meios de destruição nunca antes conseguidos. Precisamente em nome de um programa de expansão nacionalista, caucionado pelas mais sólidas referências ideológicas e estéticas. Que quis inaugurar uma ordem que transcendesse uma arrumação moral que renega, com os resultados que se conhecem. Curiosamente, os anti-semitas "normais" eram mal vistos no Reich, uma vez que o ódio irracional inquinaria a eliminação "limpa" de uma espécie sub-humana. Max Aue poderia ter sido um simples jovem idealista, contaminado pela ideologia nacional-socialista e pelo grupo Action Française - Robert Brasillach e Lucien Rebatet foram seus amigos enquanto estudante em Paris. E prosseguir uma carreira académica promissora, na área jurídica. Só que, envolvido pela polícia (Kripo) num episódio "de costumes", numa zona de Berlim pouco recomendável à noite, aceitou uma proposta para integrar a SD na frente Leste. Onde acompanha o avanço da frente na Ucrânia, Crimeia, Cáucaso, acabando em Estalinegrado, onde presenciou os horrores da derrota e da retirada alemã. E onde uma bala de um sniper russo o deixou às portas da morte, de que escapou milagrosamente e lhe abriu o caminho para uma condecoração e uma carreira em alto estilo. Aue parece querer dizer-nos que a tragédia do triunfo e queda do Reich nada tem a ver com a sua tragédia pessoal. Cruzaram-se num beco da história. Onde a culpa e o remorso são assuntos risíveis, tudo é humano, demasiado humano, no início e a partir do fim de uma certa escala. A Oresteia que Aue testemunhou é pois, com toda a propriedade, um tema nietzscheano. A sua é a de um destino para o qual a história o empurrou, de tal forma aterrador que nem as Euménides se dispuseram a suavizá-lo. Estão lá todos os elementos desse pathos: o amor impossível pela sua irmã gémea, Una - a Beatriz proibida - que o precipita na homossexualidade, certamente por vingança e para se sentir perto dela; o assassínio nunca assumido da mãe e do padrasto, no sua casa do sul de França, o que dá origem a uma perseguição tipicamente kafkiana, movida por dois polícias boçais e ridículos, representantes do senso comum, embora sem consequências práticas; o assassínio do seu único amigo, Thomas, no final, após este lhe ter salvo a vida, o que lhe abriu as portas da fuga para França, com uma identidade falsa.

Gavotte (2)


A epopeia de Maximilien Aue poderia ter acabado quando decidiu ir passar a sua licença à mansão desabitada da sua irmã e marido, um aristocrata prussiano, compositor musical e inválido, na Pomerânia. Precisamente numa altura em que a chegada das tropas russas era só uma questão de dias. A descrição da sua estadia constitui um dos momentos mais intensos e brilhantes da obra. Uma espécie de viagem desesperada no interior das suas fantasias eróticas e obsessões sentimentais, um estertor orgástico que prenunciava o fim, um suicídio "por indiferença", já que, nesta altura, a morte era irrelevante para o narrador. Mas a história resolveu ainda puxá-lo para si, pela última vez. Pela mão de Thomas, que o foi resgatar do seu inferno privado. Para assistir à demência final, ao Apocalipse. E para dar uma dentada no nariz "pouco ariano" do Führer, quando este o condecorava, no seu Bunker. Um episódio marcadamente surrealista, num dos momentos mais surpreendentes do livro. No momento em que escreve as suas memórias, Aue é um pacato gerente de uma fábrica de rendas, em França. Cuja ambição maior é a nada se inclinar, senão a inclinar-se a nada. Que suporta. "sem repulsa", os seus deveres conjugais. Que tem pesadelos inexplicáveis, mas sem uma sombra de sentimento de culpa dentro de si. A sua única virtude é não julgar ou negar o que foi nem apelar ao julgamento do leitor. Precisamente a qualidade que nos expôs a sua tragédia sem nome, onde só os sonhos o traíram. Mas sem deixar de insinuar algo que, subtilmente, vai incomodando o leitor: "a máquina do Estado é feita do mesmo aglomerado de areia friável de que é feito aquilo que tritura, grão a grão. Existe porque toda a gente aprova a sua existência, até mesmo, e muitas vezes, até ao último minuto, as suas vítimas." Essa perturbação resulta do facto de, sem que ele nada esconda, mesmo o peso moral do acto de matar, o leitor pressentir como seria escandalosamente fácil ser o que ele foi.
Existe um momento no livro particularmente significativo. Após retomar as suas funções em Berlim, Aue é destacado pelo Reichführer Himmler para elaborar um relatório acerca das condições dos detidos nos K.L. (campos de concentração) na Polónia, com vista ao seu aproveitamento como mão-de-obra industrial. De visita a Birkenau, trocou umas impressões com um médico que aí prestava serviço, acerca da brutalidade dos guardas para com os detidos. Questionado, diz o oficial: "Uma solução fácil seria a de acusarmos a nossa propaganda, quando ensina que o Häftling (preso) é um sub-homem, não chega sequer a ser humano, é portanto legítimo bater-lhe. Mas não é bem assim: afinal de contas, os animais também não são humanos, mas nenhum dos nossos guardas trataria um animal da mesma maneira que trata os Häftlinge. A propaganda desempenha de facto o seu papel, mas em termos muito mais complexos. Cheguei à conclusão de que o guarda SS não se torna violento ou sádico por pensar que o detido não é um ser humano; pelo contrário, a raiva dele aumenta e transforma-se em sadismo quando se dá conta de que o detido, longe de ser um sub-homem como lhe ensinaram, é justamente, bem vistas as coisas, um homem, como ele no fundo, e é esta resistência, não sei se está a ver, que o guarda experimenta como insuportável, esta resistência muda do outro; portanto, o guarda, quando espanca o detido, está a tentar fazer desaparecer essa humanidade que é comum aos dois. Bem entendido, a coisa não funciona: quanto mais o guarda bate, mais obrigado é a comprovar que o detido se recusa a reconhecer-se como não-humano." Esta relação ambígua entre a vítima e o carrasco é largamente desenvolvida por Arno Gruen, no seu livro "A Loucura da Normalidade" (Assírio & Alvim, 1995). A certa altura, com base num relato de um jornalista, refere a história de um soldado alemão que, após ter recebido ordens para matar um soldado russo acabado de capturar, não o conseguiu fazer, ao perceber que "não era um inimigo abstracto qualquer, mas uma pessoa que, tanto como ele, sentia medo e desespero." Conforme é relatado por Aue, Himmler proferiu um célebre discurso, numa reunião alargada dos quadros do regime e dirigentes da SS, em Poznan, em Outubro de 1943. O objectivo dessa comunicação, de uma crueza suprema, pois nada escondeu em relação à Endlösung (solução final) em marcha, foi correctamente entendido pelo narrador: implicar o auditório nessa responsabilidade, estendê-la a todo o regime, comprometer os presentes com um conhecimento de que não se poderiam mais tarde descartar. O Reichführer nem se preocupou em camuflar a mistificação em que por vezes caiem os instigadores do assassínio de massas: "A maior parte de vocês deve saber o que isso representa, quando jazem juntos cem cadáveres, quando jazem aí quinhentos ou mil cadáveres. Ter passado por tudo isso e ter-se conservado uma pessoa decente - tirando algumas fraquezas humanas - isso é que nos tornou duros." (op. cit, p. 58).

Nota: a propósito desta obra, sugiro a leitura desta entrevista de Jonathan Littell ao Le Monde des Livres.

Gavotte (3)


O universo desvelado pela obra é de tal forma vasto, que alberga com muita dificuldade intenções historicistas, alegóricas ou psicanalíticas. Não é que uma obra literária desta envergadura não possa - bem pelo contrário - suscitar leituras transversais e povoar os fóruns de discussão. É certo que um ensaio controverso sobre um tema "quente" como o nazismo faria emergir, debaixo do tapete, todo o tipo de poeiras e de fantasmas. Situação de que não faltam os exemplos. Só que "As Benevolentes" é um romance. E um romance é um artifício que modela uma possibilidade de conhecimento. De tal forma que ninguém fica imune à leitura de uma obra que não pretende demonstrar, mas desenhar um labirinto. O livro, é sabido, dividiu a crítica e o público. Particularmente na Alemanha, como seria de esperar. Foi precisamente aí que, há semanas e pela primeira vez, Littel falou sobre o livro. Foi no lendário "Berliner Ensemble", em Berlim, perante uma plateia cheia até às costuras. Na sessão, respondeu a algumas questões lançadas por um soixant-huitard bem conhecido: Cohn-Bendit. O registo da entrevista poderá aqui ser lido na íntegra. Littel avança algumas das ideias-chave sobre as quais edificou o livro: o nacional-socialismo não foi só uma construção e uma aspiração política alemã, mesmo encarando-o à luz de uma perversão do romantismo e do idealismo filosófico germânicos; implicitamente, o nazismo foi e é uma questão que diz respeito à Humanidade e não só à Alemanha; o desenho da obra decalcado da "Oresteia" não é um tributo gratuito à tragédia grega, mas a ilustração do facto de a tragédia ter funcionado como referência fundamental para esses românticos, como Kleist, Hölderlin, Schiller, ou para filósofos como Heidegger; que o nazismo era uma linguagem comum para a sociedade, onde cada um se posicionou de acordo com as suas referências ideológicas e éticas e sobretudo com as respectivas ambições sociais e políticas; que a Europa moderna nasceu das cinzas do III Reich; também a frase que foi cacha no dia seguinte na imprensa alemã, quando questionado se os horrores que descreve não tolheram o escritor : "Quando se escreve, pensa-se nas vírgulas, nos subjunctivos, nos imperfeitos, não se pensa nos cadáveres. Cadáver é uma forma gramatical, quando escrevemos. A escrita é um trabalho com a linguagem"; por último, o papel que Littel destinou a Max Aue enquanto narrador: "Queria uma narrador que pudesse ser lúcido, desprendido, distanciado em relação a todos os outros. Uma parte do trabalho, para mim extremamente importante, foi precisamente os outros. Os leitores focalizam-se bastante em Max. Mas, para mim, todos os outros, todos os que Max descreve são igualmente importantes. Fossem eles Eichmann, ou Rebatet, ou ficcionados, tentei mostrar toda a gama de nazis que tenham existido. Do pequeno nazi de base até Himmler. E Max, enquanto personagem, serviu-me perfeitamente para isso, pois estava numa posição chave como observador. Li um artigo de historiador francês que avançou a ideia, assaz interessante, que Max mentia. Pois eu nunca tinha pensado nisso. Um nazi que não era anti-semita, que não lia Rosenberg e que prefere Flaubert e música barroca francesa será credível? É possível que ele minta, ou que seja sincero. É uma possibilidade do texto, absolutamente plausível, creio". Sim, é uma possibilidade do texto. Que requer uma análise suplementar. Littel, ao que parece, não gosta muito de falar sobre esta obra monumental. Mas quando o faz, não deixa dúvidas acerca do que pretendeu ao escrevê-la. Mesmo os silêncios também contam.

Gavotte (4)


Prosseguindo a leitura em voz alta do livro, é fundamental responder ao seguinte: quem era Max Aue? Tomo como fiáveis as impressões que recolhi durante a leitura do livro. A história familiar do protagonista confunde-se com a génese do próprio nazismo: o pai fora um herói militar na Grande Guerra e um membro da aristocracia prussiana. Era o símbolo de um heroísmo inquestionável, mas algo anacrónico, segundo o cânone nacional-socialista. Acontece que ele desaparece, sem deixar rasto, logo após o conflito. O livro é equívoco quanto baste em relação ao seu paradeiro. A mãe acaba por refazer a família, voltando a casar com um homem de negócios francês. Situação que Max nunca irá aceitar e que está na base da sua fuga e adesão à Action Française e, depois, ao nacional-socialismo. Agora tracemos um paralelo com as condições humilhantes impostas pelos vencedores da Guerra de 14-18 à Alemanha, a bancarrota, a busca desesperada de referências colectivas, a restauração de uma ordem mítica, pré-iluminista, a dimensão inimaginável de uma hubris retaliadora e expansionista. O que significa que Max não corresponde de todo ao estereótipo do factotum nazi. Ele adere ao Volkstürm com toda a força das suas convicções, mas as suas referências intelectuais são europeias, fora do habitual cardápio dos autores "recomendados" pela ortodoxia. É bom não esquecer que Aue discutia apaixonadamente sobre Rameau e Couperin com o seu cunhado, compositor e músico. Defendia Kant perante Eichmann. Detestava Wagner. Revelou um profundo conhecimento do marxismo-leninismo, num tête à tête com um comissário político soviético recém-capturado, durante o cerco de Estalinegrado, e fuzilado passadas umas horas. Quis (re)encontrar Léon Degrelle, o incansável mentor do Rexismo belga, após a tomada do norte do Cáucaso, quando este comandava uma brigada que lutava ao lado da Wermacht. Nesse período, teve um breve contacto com o escritor Ernst Jünger, muito popular entre as tropas alemãs. Portanto, Aue era sobretudo um intelectual, a quem agradaria acima de tudo uma carreira académica tranquila, na área do direito internacional, mesmo que com algum proselitismo associado. Enquanto serventuário do regime, revelou uma "correcção" a toda a prova, mesmo quando dava o tiro de misericórdia aos judeus que eram atirados para as valas comuns, durante as execuções em massa de Kiev. Ou quando se insurgiu com os excessos de um oficial, numa aldeia perto de Karkhov, pois agredia "desnecessariamente", e sem ordens superiores, as mulheres judias, antes de serem fuziladas. Que lhe retribui com uma série de intrigas que determinaram a sua transferência para o fim do mundo: Estalinegrado. Como oficial superior das SS com funções burocráticas, revelou sobretudo a preocupação em tornar o sistema mais eficiente, mesmo que a sua missão fosse racionalizar o extermínio e o aproveitamento da mão-de-obra "disponível". Não creio que Aue mentisse, no sentido normal do termo. Em grande medida, deixou-se apanhar numa teia que o protegia de si próprio e que só dentro dela existia plenamente. Senti-me compelido a simpatizar com ele, com a sua tragédia pessoal. Acredito que a maioria dos leitores tenham igualmente sido presas desse impulso. Mas foi aqui que Littel revelou a sua mestria, de modo particularmente brilhante. À semelhança de Kafka, não se coibiu de desenrolar a narrativa com todos os detalhes possíveis - por vezes obsessivamente - sabendo que é nos pormenores que o Mal se esconde. No centro do campo de visão esteve sempre Aue. O que quer dizer que, em princípio, só sabemos o que ele nos conta. E o seu relato é de tal forma credível que, nem mesmo após os elementos reunidos na investigação das mortes da mãe e do padrasto, ocorre ao leitor que o autor foi mesmo ele. Permanece unicamente uma vaga suspeição. A dúvida só se desvanece no final, quando mata, a sangue frio, o seu único amigo, Thomas Hauser, depois de este lhe ter salvo a vida. Com o propósito de usar os meios de que este dispunha para adquirir uma nova identidade e fugir para o exílio francês. Até aí, Aue fora simplesmente um passageiro tranquilo e diligente, um oficial exemplar, alguém em busca da sua identidade. Mas percebe-se que é também um homicida. Mais frio e isento de escrúpulos do que aqueles que descreve no teatro de guerra e nos campos de extermínio. Percebe-se, então, que Max escondeu sempre algo, por trás do horror e da barbárie que descreve sem pestanejar: a sua própria natureza. Mas sempre acreditando - e disso querer convencer o leitor - que a verdade inimaginável que conta consome a mentira mesquinha dos seus crimes privados. Portanto, Aue não mentiu, mas omitiu as razões profundas da sua participação naquilo que descreve. Passou em claro a sua íntima natureza amoral. A qual determinou, afinal, a sua adesão inconsciente a um inferno gigantesco, que encobrisse convenientemente o seu inferno particular. Todavia, Max Aue em momento algum teme o destino. E isso aproxima-o da imponderabilidade e da incerteza. Ao mesmo tempo que o coloca muito para lá da censura ou da condenação. E da culpa. Como se, à semelhança do herói da tragédia, a única punição que o destino lhe reservou fosse ter sobrevivido. Por isso, o único facto que ele não confessa - o duplo homicídio - é, digamos, a razão de ser de uma confissão com 900 páginas. Um buraco negro.

Gavotte (5)


Até agora, a análise da obra cingiu-se ao universo da narrativa, ao enredo, às perplexidades de um tempo e de um regime: o nacional-socialismo. Faltava ainda colocar a pergunta fundamental: como foi possível "aquilo" no país que amava Schubert e idolatrava Goethe? O que levou a que a Bildung, ou seja, a seriedade e o radicalismo espiritual da cultura alemã, a sua modernidade, tenham conduzido à barbárie? Para tentar responder, necessário se torna tomar algumas precauções. É que uma coisa é falar do colapso moral de Auschwitz e outra, bem distinta é descrever uma tradição literária e moral que desaguou em Auschwitz. Mas que podia ter originado outra experiência, menos radicalizada do que o fantasma totalitário que se apoderou da Europa durante os anos 30 do século passado. Da Europa e não só da Alemanha, é bom repetir. As conexões entre causa e efeito colocam sempre uma questão muito delicada na construção do relato histórico. Em primeiro lugar, porque tendem a introduzir um elemento de necessidade onde impera, se não a liberdade, pelo menos o acaso. Depois, porque levam a que todo um processo apareça retroactivamente sobrevalorizado por um facto que essa sobrevalorização encara como fatalidade. O excesso de telos retrospectivamente reconstruído distorce o sentido típico, aleatório, polivalente, dos fenómenos que o presente vai produzindo. Convertendo essa vastidão numa imensa flecha que converge num único lugar: o grande centro de gravidade que se apodera do relato e, quiçá, da sua própria veracidade. É um trabalho de grande perspicácia aquele que se exige ao historiador: distinguir entre as causas realmente relacionadas, os elementos contingentes e os elementos completamente livres que configuram a base das suas hipóteses. Salvando-se assim do poder de atracção que certos factos exercem sobre esse material. Não há fatalismos na História. As tendências anteriores aos factos devem ser interpretadas com muita cautela. Sobretudo se essas tendências implicam uma leitura tendenciosa. Talvez seja desta tentação que a obra nos pretende prevenir. Usando de uma suprema elegância romanesca. Auschwitz e o nazismo funcionam, sem dúvida, como um campo magnético, capaz de condicionar muitas leituras. Mas é esse precisamente o triunfo póstumo dos nazis. Sobre o qual haverá que reflectir sem preconceitos. Não porque, de facto, se trate de uma vitória póstuma, mas porque é de acolher a possibilidade de que uma coisa - a cultura literária e moral alemã dos séculos XVIII e XIX - não tenha nada a ver com outra - o holocausto, o totalitarismo e a guerra de extermínio. E aqui convém distinguir: uma coisa é a afirmação de Adorno acerca da impossibilidade da poesia depois de Auschwitz e outra, bem diferente, é a obscuridade que Auschwitz projecta antes de si, retroactivamente. Transformando a construção da modernidade cultural na Alemanha como um caminho até ao holocausto. Essa sobredeterminação dos factos em função de um fim, tão monstruoso quanto ilógico, converte-os em algo que participa dessa irracionalidade, em algo inútil do ponto de vista da visão da Bildung alemã como um processo com potencial civilizador. Na verdade, esta não tinha esse propósito, no sentido pacificador, pluralista e democrático a que tendemos a associar a ideia de civilização. Uma ideia supostamente francesa, que aparece contraposta a um conceito bem alemão: a Kultur. Ora, a função desta não era tornar as pessoas melhores, satisfazer a utopia de uma cultura emancipadora, humanista, mas sim tentar evitar que algumas delas não soçobrassem no processo de individuação e socialização.

Gavotte (6)


Ainda e sempre a propósito de "As Benevolentes", cabe desenvolver um pouco mais e concluir a análise do significado particular da Bildung alemã.
Antoine Berman, em Bildung et Bildungsroman, ("Formação cultural e romance de formação"), fornece as pistas. Segundo ele, "A palavra alemã Bildung significa, genericamente, "cultura" e pode ser considerado o duplo germânico da palavra Kultur, de origem latina. Porém, Bildung remete para vários outros registos. Utilizamos Bildung para falar no grau de "formação" de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte. E é a partir do horizonte da arte que ela se determina, a maioria das vezes. A palavra alemã tem uma forte conotação pedagógica e designa a formação como processo. Por exemplo, os anos de juventude de Wilhelm Meister, no romance de Goethe, são os seus Lehrjahre, onde ele aprende somente uma coisa, sem dúvida decisiva: aprende a formar-se (sich bilden)". Nem de propósito, o processo de formação intelectual e moral de Max, até um certo ponto, parece decalcada da obra de Goethe. A vastidão do seu conhecimento é surpreendente, como mais atrás referi. Todavia, a Bildung aparece igualmente associada à noção de trabalho. No sentido que, mais tarde, Hannah Arendt deu à palavra labor. Ou seja, a acção prática. Como salienta o autor citado, " Enquanto trabalho, Bildung é formação prática, formação de si pela formação das coisas. No famoso capítulo da Fenomenologia do espírito de Hegel, a dialética do Senhor e do Escravo, a consciência escrava liberta-se por um processo de formação: à medida que a consciência trabalha formando as coisas em seu redor, ela forma-se a si mesma."
Retomando o tema central, não creio que seria apropriado apelar ao wagnerianismo de Hitler. Mas se prescindirmos desse tópico, poderia sempre pensar-se que Hitler não viu nas óperas de Wagner o que há realmente nelas. Que o seu olhar empobrecido pelo anti semitismo - esse "socialismo para idiotas", como alguém lhe chamou - não captou tudo o que Wagner colocava nelas. O espantoso caso alemão consiste, porventura, em forçar a perplexidade humanista até convertê-la numa espécie de argumento para uma narrativa histórica. Como é possível que os alemães, tão cultos, incorressem na barbárie e no extermínio de milhões de pessoas? Essa continua a ser a pergunta básica desta análise. Todavia, ela encerra um pressuposto perverso: se a cultura implica (ou deveria fazê-lo) elevação moral, então poderíamos considerar todas as pessoas incultas como moralmente irresponsáveis, ou inferiores, ou simplesmente incapazes. A cultura e a moral são variáveis que não têm necessariamente que justificar-se entre si. E nem sequer são realidades que tenham que cruzar-se. Todos os que estranham que se faça um link de Schubert a Auschwitz pensam provavelmente que alguém inculto seja mais apropriado para fazer de algoz. Devem então escandalizar-nos menos as matanças do Ruanda, em 1993, do que a "solução final", só porque foram praticadas por gente sem a Bildung ocidental e humanista? Esse é um caminho muito perigoso, que permite o regresso de fórmulas racistas, encapotadas de boa consciência. É como se assumíssemos que é próprio de bárbaros ser bárbaros. Mas nós, que somos tão civilizados, como pudemos chegar a "isto"? Simplesmente porque a lógica cultural acompanha a barbárie, mas não a pode impedir. O que impede a barbárie é outra coisa. A bondade e a generosidade não passam por Schubert. Claro que este não as exclui. Todavia, não as consegue garantir. Os juízos morais não dependem, nem se nutrem, da sensibilidade estética. Respondem a outra ordem de coisas, não direi mais complexa, mas substancialmente diferente. Portanto, o assombro não é como se parte de Beethoven e se chega a Auschwitz, mas por alma de quem se há-de concluir que o facto de alguém gostar de Beethoven ou de Novalis deveria torná-lo melhor pessoa! Hannah Arendt, num artigo intitulado precisamente "A crise da cultura" explica muito bem a história do filisteísmo cultural. A certo passo, refere que o grande erro de uma burguesia cultivada foi crer que, realmente, a poesia, o teatro, a filosofia, a música, a poderia tornar melhor do que era. A anti-arte, preconizada pelo dadaísmo em 1917, fora já um aviso de que essa cultura filisteia só havia ensinado melhor aos burgueses a morrer e a matar em massa. O nacional-socialismo veio dar-lhes toda a razão, da forma trágica que se conhece. E se é verdade que Hitler disse nos seus últimos dias que "o povo alemão demonstrou não ser digno de mim", então pode afirmar-se que o síndrome do artista incompreendido derramou o seu último fulgor, de uma aberrante e profunda coerência. Bem no centro da devastação produzida pelo seu pior sonho: o Estado como obra de arte totalitária.

Gavotte (epílogo)

Liliana Cavani é conhecida por ser uma cineasta "maldita". Ou seja, alheia aos cânones do politicamente correcto e aos estereótipos do gosto hegemónico. De entre a sua obra singular, só conhecia até agora "Para lá do bem e do mal". Como o título sugere, trata-se da recriação de uma parte significativa da vida de Nietzsche. Nomeadamente, a sua passagem pelo norte de Itália, o mal de vivre cultivado pela aristocracia do espírito no último quartel do séc. XIX. E, claro está, o triangulo amoroso onde pontuou a inevitável Lou Salomé (e Rée).
"O Porteiro da Noite" (1974), é um filme perturbador, subversivo. Formalmente, trata-se de uma tragédia, ainda que alheia à compaixão e ao lirismo. Que desvela um erotismo brutal e intensamente poético. Dirk Bogarde é Max Aldorfer, um antigo oficial das SS e médico num campo de concentração. Após a guerra, escapando à justiça dos vencedores, trabalha como receptionista num hotel de Viena. Local onde reencontra, enquanto hóspede, uma das suas antigas "cobaias" e amante, Lucia Atherton, uma judia americana (Charlote Rampling). Max integra um grupo clandestino, composto por ex-nazis. O qual se encarrega de velar pela tranquilidade dos seus membros, mesmo que isso implique "apagar" algum potencial delator, ou testemunha incómoda. A ligação sentimental entre ambos refaz-se, como se de uma maldição se tratasse. Mas não sem alguma resistência. E não se trata, como já li, de uma ilustração do célebre "síndrome de Estocolmo", da atracção entre o carrasco e a vítima. Todavia, percebe-se porque é que o filme foi tão ostracizado durante tanto tempo. Os vencedores da guerra e a narrativa por si criada acerca da barbárie nazi não podiam permitir que um antigo torcionário "padecesse" de uma recôndita humanidade. Nem muito menos que uma vítima da Endlösung (solução final) retomasse uma ligação amorosa com um "monstro", que nem o terror nem a subjugação explicam. Onde os sinais da opressão, agora consentida e ambivalente, desenham as regras de uma obsessão passional viscontiana, demasiado intensa para sobreviver e demasiado verdadeira para ser tolerada. Onde um erotismo desregrado se alimenta da vigilância que sobre ele é exercida. Onde só esse transporte radical torna possível uma IGUALDADE ABSOLUTA E DIÁFANA entre o ex-torturador e a sua ex-vítima, agora irmanados na vida e na morte. Por outro lado, há um traço nesta obra que deve ter perturbado ainda mais os zelotas: a eliminação de qualquer intuito moralizador, propagandístico, quando são mostradas as sequências do período da guerra. Insistindo-se, ao invés, numa hiper-estetização do nazismo, despojado do seu programa, do "Lebensraum", e apresentado como puro cenário. Onde a arte ilude a subjugação que a inscreve e o corpo se descobre como o lugar preciso onde a dominação se exerce. Um cenário para a ditadura do espírito, a depuração da moral burguesa, o retorno a um gosto e uma pureza primitivas, que anunciam a verdadeira e redentora modernidade. Neste ponto, ficaram particularmente célebres duas sequências: a primeira, a do ballet ("nitzscheano") ao som da "Dança das Fúrias" (retirado de "Orfeo ed Euridice", de G.W. Gluck). Executado por um dançarino perante um grupo de oficiais nazis. A segunda, uma cuidada coreografia de cabaret, com pinceladas de Kokoschka. A cantora/striper é a própria Lucia. No final, descobre-se depositária do mesmo troféu que a bíblica Salomé, aos pés do seu amo e senhor. Quer numa quer noutra, não seria de espantar a presença do "nosso" Max Aue. Lugar de onde provavelmente nunca saiu.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Elogio de dois hispânicos

Ninguém se apercebeu do destino de Adolfo Suárez, o Primeiro Ministro da transição em Espanha que fundou a União do Centro Democrático, a qual desapareceu ante o projecto do Partido Popular dum vaidoso Aznar. Suarez vive mais ou menos escondido tendo apenas aparecido ano passado para apoiar a candidatura do seu filho à Região de Castela.
Suarez começou como ambicioso jovem do Movimento Nacional de Franco que conjugava a Falange-JONS, os réquétés, outros monárquicos e as Direitas espanholas autónomas. Acabou por herdar de Arias Navarro, o Primeiro-Ministro espanhol que alinhou a divisão de élite espanhola na fronteira com Portugal, no Verão quente de 1975, e acabou por ter de se demitir. A ele pertence um daqueles monumentos da Política em que só se começa a reparar, ao fim de muitos anos. Quando a Guardia Civil entrou dentro do Parlamento, aos tiros, só dois homens não se baixaram. Um general e Suárez que, como Presidente do Governo permaneceu imóvel e em silêncio, no podium, em frente aos microfones. Diz-se que foi um dos discursos políticos mais importantes da História de Espanha, pronunciado em absoluto silêncio, durante cerca de duas horas. Alguém insinuou que a sua verticalidade tinha a ver com compadrio com os golpistas. Suárez sabia que se o matassem, os gritos da sua juventude de falangista sairiam anacrónicos. Se gritasse pela Democracia, alguém se riria dele. Ficou o seu enorme silêncio, porque a cruz enorme que carregamos, não se vê. E ele levou-a ao seu lugar.

Morreu Palma Inácio, esse homem corajoso muitas vezes, gentil, louco, humilde. Foi ele que inventou os desvios de avião e, como aqueles anarquistas russos que, se a bomba que tinham posto matava inocentes, se apresentavam depois na esquadra da polícia, quem me dera que Palma Inácio fosse o mecânico do avião da Air France que caiu. Este mecânico aeronáutico representa esse estranho povo, os Citinos, que se instalaram no Algarve e obrigaram o Rei de Portugal a juntar ao título, o de «Rei dos Algarves». São gente grácil, misteriosa, obcessiva, livre até a Liberdade se esfarrapar e dissolver no Universo. Não se pode confiar neles mas apenas no Deus cigano e luminoso que os incendeia. Morreu sem dinheiro para pagar o lar onde a sua alma ia passando para um Paraíso inconsciente. Ficará o Luar, ao qual atacava, roubava, fugia, como Zé do Tilhado, como Robin Hood.

De ambos me lembra a frase do Padre António Vieira: «Se cumpriste o teu dever e o Estado te tratou mal, tu fizeste o que tinhas de fazer e o Estado fez o que é de esperar».

André

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Intermitências atlânticas


Vou andar por aqui uns dias. Quero finalmente conhecer um povo superior, segundo as palavras de AJJ!!! E de caminho dar conta de alguns recantos da ilha... Percorrer o trilho das levadas é só um exemplo. Bom, para já não é preciso dizer mais nada...

Lido

Recomendo a leitura deste excelente texto no "Combustões", intitulado "Saber viver num país pobre ou temos de voltar aos anos 60". Aqui fica um excerto:
(...) Agora, não há dinheiro fácil, não há empresas portuguesas nem marcas portuguesas, nem investimento português ou estrangeiro que se consigam lobrigar na complexidade crescente da trama económica global. Perdemos em Portugal, perdemos no "espaço económico português", perdemos na corrida à fixação de novas tecnologias, perdemos cérebros e vamos, lenta e inapelavelmente, voltando aos concursos de costureiras, às inaugurações de nada, às visitas de estrelas de cinema "em busca de sol e praia". Não deixa de ser significativo o facto de, a partir de finais da década de 90, Portugal regredir cada ano nas estatísticas da OCDE e do Banco Mundial. Corremos o grave risco de sermos ultrapassados pela totalidade dos Estados do ex-bloco comunista e de, acorrentados à fatalidade espanhola, dependermos das flutuações e ritmos da economia vizinha.

terça-feira, 14 de julho de 2009

A idade dos porquês - 3

Porque é que a Joana Amaral Dias, tão bem "escudada", diz tanto disparate no programa "Fala com Elas"? Na última emissão, chegou a dizer, a propósito da renúncia à nacionalidade portuguesa por Maria João Pires, que as crianças da região de Belgais eram paupérrrrrimas, sei lá!!! Não há nada que me ponha tão indisposto como estas tias da esquerda caviar...

sábado, 11 de julho de 2009

Graffitis - 36


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Longa Marcha

No fim dos anos vinte havia gente boa na China que achava que era melhor morrer de armas na mão do que morrer aos bocados na rua, de ópio, de fome, de exploração. Tinham começado por ser republicanos, por desespero contra a traição do Imperador manchú face aos japoneses. Tinham-se depois tornado comunistas porque acreditavam num último esforço da Justiça. E revoltaram-se em Shanghai onde o nacionalista chinês Chiang Kai-Shek, que amava a sua Pátria ao seu modo, os decapitou às centenas na rua. E fugiram. Fugiram. Para o Norte, para Oeste. Marcharam pelos terrenos mais difíceis do Mundo, morreram de fome sem pilharem os camponeses. De cada dez, à partida, chegou apenas um. Muitos ficaram para trás, morrendo torturados. Uma delas foi a primeira mulher de Mao Zedong. Os chineses chamam-lhe «um tempo para lembrar». Entre eles ia um homem pequenino, que se embriagava sempre que podia, que os outros gozavam e a quem chamavam Deng Xiaoping, a «pequena garrafa Deng». Mais tarde, esta pequena garrafa, achou que não importava se o gato era preto ou branco, desde que caçasse ratos, os ratos da miséria da sua gente e, quando morreu, pediu que o queimassem e deitassem as cinzas dele ao mar. Do outro lado do mar, um actor amado pelas mulheres que fora toda a vida homossexual, Rock Hudson, morrendo em sofrimento, pediu a mesma coisa.
Hoje vejo que uma maioria de gente, oprimida e humilhada nas suas crenças e na sua cultura, acha por bem correr a rua de uma cidade no meio do deserto e matar à paulada uns imigrantes internos. E depois, vejo que os imigrantes internos se acham no direito de, no dia seguinte, correrem as ruas e vingarem os seus companheiros inocentes que morreram no dia anterior. No meio deles vejo os polícias chineses e ao cimo vejo um mundo que diz «eu não sou polícia», como Caim dizia a Deus, depois de matar Abel, « eu não sou guarda do meu irmão».
Que a Longa Marcha guarde estes polícias. Ninguém tem o direito de andar a matar à paulada. Que o espírito de Sun Tzu, aquele General que achava que a maior vitória era aquela em que se não derramava uma gota de sangue, encha de alegria o trabalho destes polícias mal equipados, mal pagos e com um sentido inato de que as coisas têm um modo de ser feitas. O mundo em que vivemos será mesmo esse, aquele em que nos viraremos para a direita e veremos a torre de uma mesquita, nos viraremos para a esquerda e veremos alguém que acelera ruidosamente um carro que não queremos e contra o qual votámos. Olharemos em frente e teremos alguém que pensa e sente de um modo diferente daquele que aprendemos. Olharemos para trás e alguém nos olha com mau-querer.
E que tenhamos a coragem, se a situação se tornar insustentável, de começar a Longa Marcha, pelos terrenos mais difíceis do Mundo e do Espírito, morrer de sede sem roubar uma maçã pendurada do ramo de algum pobre. Só para que o Mundo seja menos feio, como na coreografia de Michael Jackson em «Beat it», onde a violência se transformou em Dança e a dança é a vitória sobre os demónios, pelo Amor e pela Harmonia. Que os Polícias da China, num sítio onde o Céu é muito alto e o Imperador está muito longe, dancem como os guerreiros de Qia Long, enterrados, numa noite de Lua Cheia.

André

Stalker

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Acabei de efectivar um post sobre a Guarda

Lendo alguns blogues locais e ouvindo algumas opiniões, parece que o exercício da crítica na Guarda se tornou um pecado, digamos, venial. Exigindo-se, implicitamente, uma consensualidade e uma auto-complacência que, normalmente, conduzem ao umbiguismo e ao definhamento adiado. A palavra "parece", que atrás utilizei, não foi por acaso. Claro que ninguém se coíbe de comentar episódios da vida pública. E nem é esse facto que está aqui em causa. O problema está a montante: na desinformação por vezes veiculada pela comunicação social local; na descontinuidade entre a opinião que se tem em privado daquela que, sendo o caso, se tem publicamente (isto porque não existe na Guarda um espaço público plural e esclarecido digno desse nome, prevalecendo a não inscrição de que falava José Gil); a tendência a pessoalizar o debate, onde isso não é de todo aconselhável. Houve uma verdadeira causa em que participei, nos anos da juventude na Guarda, ao lado de muitos outros: a afirmação da modernidade na cidade. Pelos vistos, duas décadas depois, o programa da altura continua a fazer sentido. Podia dar muitos exemplos, mas vou-me cingir a um, por sinal emblemático: o TMG. Na esmagadora maioria das cidades deste país, a existência de uma estrutura daquela qualidade e com uma oferta cultural da envergadura que se sabe, seria motivo de orgulho para todos. Mesmo discordando-se dos padrões dessa oferta. Pois o bom senso e algum brio levariam a concluir que, sem um TMG, a cidade ficaria muito mais pobre e, se calhar, muito mais triste. Na Guarda, infelizmente, não foi isso que sucedeu. Embora dotada de um objecto cosmopolita que a projecta, uma parte dela encara-o com desconfiança. Em parte, graças a uma minoria "qualificada", que o ataca não por razões plausíveis, i.e., discordâncias face ao modelo de programação ou determinado espectáculo, mas como argumento ao serviço da luta política, da concorrência empresarial, ou de simples interesses difusos e agendas pessoais. Ou seja, para alguns cidadãos, sejam eles anónimos ou figuras da vida pública, o TMG ainda não foi internalizado como património da cidade, estabelecendo-se à sua volta um módico de consensualidade e reconhecimento. Outros exemplos poderiam ser dados, como já referi. E todos eles conduziriam ao mesmo diagnóstico. Todavia, existem diferenças entre a forma como o obscurantismo e o ódio à moderninade se estrincheiravam na altura e agora. Se antes o clericalismo e o caciquismo eram alvos certos e cristalinos, agora oa agentes do subdesenvolvimento podem ser encontrados em qualquer lugar. Nuns mais do que noutros, é certo. Só que agora sobrevivem de /e alimentam os pequenos poderes, em lugares-chave, as clientelas renovadas, os sibilinos jogos de influências, as redes de branqueamento e de impunidade. Ou seja, antes actuavam como polícias da moral e agora como agentes de uma administração, de uma economia e de um mérito paralelos. Portanto, nesse acerto da cidade com a contemporaneidade, é caso para dizer: "a luta continua"...

quinta-feira, 9 de julho de 2009

O velho do restelo

Em outro momento, aqui declarei Miguel Sousa Tavares como intelectualmente defunto para este blogue. As razões foram explicadas na altura. Até porque MST não lê blogues, detesta bloggers e desconfia das redes sociais, como por várias vezes já se prestou a esclarecer. Pois o autor de "Equador" acaba de publicar uma crónica no jornal “Expresso”, intitulada "Esta noite sonhei com Mário Lino". Trata-se da recriação de um diálogo, meio real meio ficcional, que teve com uma "amiga estrangeira" (uma péssima definição, pois penso que os amigos nunca são estrangeiros para nós, a não ser que...) num percurso pela A6, entre Lisboa e Badajoz. Como se dá conta, o tema é a "alta velocidade", a construção de auto-estradas "a mais" e outros "elefantes brancos". O texto, muito apropriado para a silly season, é inquestionavelmente divertido e cria uma razoável malha argumentativa sobre temas fundamentais para o desenvolvimento do país. No entanto, se por um lado revela um pathos muito característico, por outro enferma de alguma demagogia e de muito pessimismo. Senão vejamos:
1. MST tornou-se uma espécie de luddite do séc. XXI. Que para além de desdenhar as novas formas de comunicação e informação, é contra o investimento em vias de comunicação estruturantes (ferro-rodoviárias), que associa a um fontismo desmesurado e sem justificação.
2. A sua "luta" pretende recriar o mesmo episódio de há 150 anos atrás, quando começaram a ser construídas as grandes linhas férras e o combóio se afirmou na paisagem e na economia nacionais. Marcando irreversivelmente o seu desenvolvimento. Sabendo-se que, em 1820, não havia sequer uma estrada contínua entre Lisboa e o Porto, demorando a viagem de carruagem dois dias. E não houve decerto factor de aproximação à Europa tão forte como a existência da linha "Sud Express", apartir de 1880. Sim , também li "A Cidade e as Serras", mas aqui a discussão é outra.
3. Portanto, em vez de fazer esperas aos combóios, armado com um chuço ou uma gadanha, como os camponeses da época do fontismo, MST aparece sob as vestes do paladino contra o betão, o asfalto e os planos faraónicos. Sejam eles o TGV ou a barragem do Alqueva, as autoestradas ou o novo aeroporto.
4. Convém agora dizer que o cronista tem razão nalguns pontos. Passo a enumerá-los: o excesso de troços de autoestrada ligando pontos já servidos por essa infraestrutura, ou cuja extensão diminuta aconselharia à simples duplicação das vias existentes; o caos urbanístico que se instalou na maior parte do território continental e insular; a saturação da linha do Norte, apesar do colossal investimento aí realizado; o tradicional esbanjamento de recursos públicos.
5. Em tudo o resto, a sua crónica parece-me manifestamente exagerada, parafraseando Mark Twain. Notam-se demasiado os preconceitos e a mente curta do lisboeta para quem o resto do país, com excepção do Algarve, deveria ser uma reserva cinematográfica, cinegética e com livre-trânsito para as provas com veículos todo o terreno. De preferência com estradinhas com boas vistas, paisagens sem mácula poluente, gente sorridente e solícita, uma disneylandia rural fantasmática, sem campos de golfe, mas cheia de hoteis com jaccuzzi, para as escapadinhas com as "amigas estrangeiras". Um país de acordo com a versão ampliada e revista da que teve o Estado Novo, pela mão de António Ferro e do SNI.
6. Po outro lado, MST recusa liminarmente a construção do TGV. Usando o argumento do provincianismo. É curioso que o cronista tenha referido esse pecadilho intelectual. O escritor Milan Kundera, no seu último ensaio, "A Cortina" (ed. ASA, 2005) refere precisamente a existência de dois tipos de provincianismo, igualmente negativos: o dos "grandes" e o dos "pequenos". É certo que o autor se refere sobretudo à produção literária. No entanto, o argumento é válido mutatis mutandis. Pois MST consegue, de uma assentada, conciliar os dois provincianismos. Ou seja o "deixemo-nos ficar isolados pois ninguém quer saber de nós", típico de quem vive num país periférico, com o "nós aqui já estamos servidos do que interessa, para quê dar valor ao que está fora?", típico de quem vive na capital!
7. O ponto de vista de MST resulta assim pobre, curto e algo arrogante E porquê? Sabe-se que o custo do transporte rodoviário, de que depende 80% da economia nacional, se tornou incomportável; que existem autoestradas transversais, que ligam o interior e o litoral, ainda sem custos para os utentes (algo de que MST decerto discorda), onde a discriminação positiva se justifica plenamente, uma vez que são essenciais para o desenvolvimento do país e para a sua coesão; que um novo aeroporto se justifica, embora com dimensões modestas, destinado a vôos "low cost", associando as respectivas companhias à gestão da nova estrutura; que é urgente a construção de duas linhas de alta velocidade: uma em "T" que ligue Lisboa ao Porto e a Madrid, e uma outra, sobretudo para mercadorias, entre Aveiro e Salamanca, com ligação à rede europeia.
8. Claro que todas estas estruturas são dispendiosas e requerem um elevadíssimo investimento. Mas os benefícios não se podem medir somente em números. Tal como o Alqueva não se pode avaliar pelos resultados imediatos, mas pela sua utilização futura, cujos contornos porventura desconhecemos. Ora, é precisamente pela amplitude da generosidade para com as gerações vindouras e pela visão prospectiva em relação ao devir que a história nos irá julgar. Não desperdicemos a oportunidade.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Stalker

"A Aversão", de André de Melo (3ª parte)

A Si tinha ficado a falar com o Director do “Europa”. Este deixara-se enterrar numa poltrona com os joelhos completamente juntos e os pés cada vez mais afastados.
De vez em quando punha as mãos entre as pernas e olhava para a sala semi-vazia, um pouco desolado. A contracção em que vivia - o prestígio também, é certo - como Director do órgão oficioso do Estado (o que era diferente de Governo), a religião do colarinho branco e dos fatos muito respeitáveis em que tinha sempre vivido, deixavam-no, por vezes, de rastos. O pior era quando antecipava os pequenos gestos de contracção próprios da intimidade e lhes começava a soçobrar ainda em público. Fazia uma triste figura, ele, que enganara tanta gente com o seu queixo sem pescoço sempre apoiado num firme colarinho engomado e as meias pretas longas compradas em sítios que se segredavam como os fornecedores de droga ou de charutos havanos de imitação. Tinha a roupa toda engelhada à volta das pernas, contraídas num frémito de aflição e o casaco pendurado no palmo de ombros como a sobrecasaca do grilo dos desenhos animados. Ficara um bocado como o marido da Mi, o negociante francês (estão a lembrar-se, certamente) mas não era já um mergulho de cabeça na depressão porque toda a figura estava patinada de claro e dava um certo ar primaveril. Era antes um murro no estômago do ânimo, o que condizia, aliás, com a sua posição, curvado, de cotovelos no umbigo. Ficaram juntos, ele e a Si, por algum meneio que esta deu ao corpo grande onde já adornava um sortido razoável de hospitalidades. (ler mais)

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domingo, 5 de julho de 2009

Sarebbe bello vivere una favola - 11


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Contraditório

Por vezes ouço o programa "Contraditório", na Antena 1. Trata-se de uma emissão em formato "debate", com comentadores residentes: Ana Sá Lopes, Carlos Magno e Luís Delgado. Recentemente, fui formando a convicção de que a rubrica já teve melhores dias. Na última emissão discutiu-se a saga taurina de Manuel Pinho, o debate parlamentar sobre o Estado da Nação e o relatório da SEDES, que aponta o estado da Justiça como o principal factor de descredibilização do regime. Pois acreditem que o fórum se saldou por uma mediocridade nunca vista. Os comentadores limitaram-se a debitar lugares-comuns, por vezes a descair para o engraçadismo, sem nunca ir à raiz dos problemas. Ana Sá Lopes, um dos maiores exemplos vivos do politicamente correcto, não descola do discurso da tia da Linha, indecisa entre ir ao psicanalista ou ir a uma reunião feminista. A vacuidade é atroz. Luís Delgado, mais um liberal saído na Farinha Maizena, tornou-se um apoiante de última hora de Sócrates. Tudo isto porque, sendo um santanista, não lhe interessam nem um bocadinhos os louros para Ferreira Leite. Lá vai dizendo umas coisinhas sobre politica internacional com algum interesse. O mais lúcido, apesar de tudo. Por último, aparece Carlos Magno. O homem está em estado de pré-senilidade. Repete-se, não deixa falar os outros. Permanentemente auto-centrado, não esconde um provincianismo que, no Porto, já só usa quem quer. O seu posicionamento político é uma nebulosa de bitaites. Onde o factor territorial, com o Porto no centro de tudo, comanda a vida, como na canção. Depois quer fazer passar um progressismo afinal conservador, muito "anos 60", do género "eu é que estive lá nos anos da brasa", etc. É o típico burguês do Norte, mas sem o brilho, a ilustração, ou aquele cepticismo epicurista que podemos encontrar nas crónicas de António Souza Homem. O que redunda, por vezes, num atavismo inaceitável. Recordo-me do momento em que Ana Sá Lopes relatava a importância que tiveram na AR as redes sociais online, mormente o Twitter, no episódio da demissão de Pinho, após a sua investida. Magno rebateu logo que isso (as redes) era politicamente correcto. Assim, sem mais nada. Em que planeta vive este homem? No conjunto, a argumentação de todos foi paupérrima. No caso da Justiça, limitaram-se a meia dúzia de banalidades, a uma comparação com o sistema judicial americano e se a pena imposta a Madoff tinha sido "correcta". Muito pouco, diga-se. Nunca lhes passou pela cabeça que o maior problema da Justiça se pode encontrar na crónica balcanização pelas várias classes que nela operam?

sábado, 4 de julho de 2009

O terceiro mundo

Este homem é muito mais do que um vendedor de pneus suburbano, semi analfabeto, sem competências sociais, nem "mundo". E que o laxismo que alguns confundem com democracia empurrou para o estrelato. É o representante exemplar do pato-bravismo pós prec, que prosperou à custa de negócios semi-clandestinos. E que, como bom self made men da gamba e do merxedes, não descurou o negócio. Gere o Benfica como se fosse o supermercado da esquina. Sem estratégia, sem brilho, sem resultados, sem auto-avaliação, sem respeito pelas opiniões divergentes, sem educação, sem estatura cívica condigna, sem deixar de se achar dono daquilo que é simplesmente depositário em nome dos sócios, sem rasgo, sem carisma, sem fair play, sem nunca reconhecer o erro. Este homem pode ser um bom fiscal de obras, mas não serve para um lugar como o Benfica. Se continuar, vai acabar por o banalizar, pô-lo a lutar pelo 3º ou 4º lugar, ser o bombo da festa dentro e fora do país. Um case study onde o sebastianismo manda, em lugar das vitórias. Portanto, espero bem que a coisa bata bem no fundo. Pode ser então que alguém aprenda alguma coisa.

PS: O homem teve uma vitória albanesa. que os capangas de serviço já se encarregaram de apregoar aos céus. Mas porquê tanto estardalhaço? Lembremos que foi "eleito" ao arrepio de uma decisão de um Tribunal; que passou a campanha a caluniar os opositores; que recolheu 18 825 votos, num universo de 178 000 sócios (para já não falar nos tais seis milhões de simpatizantes); que reduziu o Benfica, desportivamente, à vulgaridade. Que legitimidade real tem o homem para continuar a enterrar o clube? Será que não tirou as devidas conclusões, face à onda de contestação à sua gestão? Por outro lado, as reacções sectárias e alucinadas dos apoiantes envergonham-me como adepto. Pensava que o Benfica era um lugar de liberdade e de pluralidade. Não é. Isto não foi uma eleição, mas uma nomeação por uma micro minoria. Com estas hordas, o SLB tornou-se um lugar perigoso. E eu já não quero assistir ao resto.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A idade dos porquês - 3

Porque será que só os poetas conseguem encontrar, no mesmo instante, um enigma insolúvel e uma inexplicável coerência?

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O auto da marisqueira


Está confirmado oficialmente. A lista do senhor da imagem, concorrente às eleições de sexta-feira, vai ser suspensa. Graças à providência cautelar interposta por Bruno Carvalho, o outro concorrente, director do Porto Canal. Cujo blogue que o lançou na corrida -"Novo Benfica" - tenho acompanhado e comentado com interesse. Finalmente fez-se justiça! A manobra da demissão em bloco dos corpos sociais, destinada a antecipar as eleições, transformando-as numa espécie de plebiscito forçado, não deu os frutos desejados. O expediente, de uma esperteza saloia pungente, deve ter sido combinado nalguma marisqueira de referência. Imaginemos então os pormenores:

O da bigodaça lá ia ensaiando soletrar três frases seguidas sem erros ortográficos e sem se levantar e dizer, em alvoroço, perante o fantasma de Pinto da Costa: "porra, tirem-mo da frente senão, senão... mostro-lhe já que também sou sócio do clube dele... olha, olha... eu nunca falei com árbitros, ouviram?" Mais adiante, depois de umas ameijoazinhas, verberou, com ar berlusconiano, contra "essa garotada que anda por aí... estarei firme contra os oportunistas", referindo-se aos críticos que se limitaram a querer um Benfica ganhador e moderno".
Por sua vez, o Vilarinho, depois de duas "Tapada do Chaves" tinto, cinco Chivas e três CRF bem aviadas, ainda conseguiu pôr-se em pé: (para o empregado) "ófaxavôr, traga-me um absinto com gelo, ao menos é verdinho (hic)... sim, porque de benfiquistas já estou farto... sempre a chatear, sempre a criticar (hic)... aquele bruno tripeiro a comparar-nos a cigarras (hic), sabem que mais? agora sem a barba chegava bem pra ele... HIC" (arroto canoro, aplaudido imediatamente pelos apoiantes vieiristas, com ar de sicários de algum "bandido" mexicano, agarrados à lagosta e atirando amiúde uma setinhas contra o alvo com o retrato do bruno carvalho).
Entretanto, o comprador de jogadores por atacado conferenciava à parte com os capangas do blogue "Tertúlia benfiquista". " Vencer, vencer? Quantos são, quantos são? A gente parte-os todos, meu comandante, é só dizer" dizia um, enquanto dava vigorosas marteladas na perna de uma sapateira. "Um lacaio do Oiliveirinha, é o que ele é. A criticar assim à tripa forra este nosso querido presidente! O único que consegue estar em 5 casas do Benfica (faz um acto de contrição) ao mesmo tempo..." dizia outro, a sorrir para um futuro tachinho. O querido líder lá ia compondo a bigodaça, tamanho 165/70 R13, enquanto murmurava para si: (aparte) "quem me dera ser o estaline, io... assinava já umas ordenzinhas de execução antes do digestivo, io... bigode e perfil de superhomem nitzschiano já tenho, io..." (claro que esta tirada do "superhomem" é reveladora que o nosso homem afinal é um letrado a fazer-se passar por pastor do povo benfiquista, mas que, afinal, se revelou como um hamlet de fino recorte). Nisto chega o Vilarinho, de gatas, agarrado a uma perninha de frango e uma garrafa de Cutty Sark 15 anos. "Já sei! (hic, hic) Demitimo-mo-n..-nos todos em bloooco.(hic) Assim teremos iiiiileizões agora em Julhlhlhlho (hic) e vão ser favas contadas... O Moniz que o meta no nariz e o carvalho que vá pró..." O bimbo levantou-se, com ar de quem descobriu a pólvora, seguido imediatamente dos consortes. "Meu bom Vilarinho! Dá cá esses ossos e, já agora, a garrafa! Acabaste de me resolver um problema f..... Até já era para apitar pela intervenção divina! Sim, porque eu com árbitros só falo no messenger." Seguiu-se um concurso de jargão futebolístico, onde os sicários e comensais puderam qualificar apropriadamente os críticos e mofinadores da OBRA FARAÓNICA, GIGANTESCA, DIGNA DE CALÍGULA, CICLÓPICA E IMORTAL DE LFV. Sem nunca lhes passar pela cabeça que, se os adeptos do Benfica quisessem um bom contabilista ou um bom gestor de conta a dirigir o seu clube, mas com a equipa a ser humilhada e a nada ganhar, torciam aos fins de semana pelo gabinete de TOC mais próximo, ou pelo Banco de que seriam clientes.

Tsimfuckis

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Já agora...

Intensificação da co-gestão como fórmula participativa por excelência na condução das empresas; encarar o trabalho como um valor acrescentado na qualidade de vida e realização pessoal e não como uma mera utilidade produtiva; abandono gradual do conservadorismo fiscal, com a adopção da progressividade e de uma taxa a incidir sobre operações financeiras; luta sem quartel contra a burocracia e a ineficácia da administração pública; e, sobretudo, para clarificar o contrato associativo que funda a democracia representativa, não confundir a vontade de todos com a vontade geral...
Eis alguns temas que, na praça pública e nos think tanks mais atentos, poderiam fazer a diferença no debate político e social do momento. E trazidos por quem? Pela esquerda reformista, evidentemente. Pois a outra anda demasiado ocupada a olhar para o passado e a apontar aos "neoliberais" nas barracas de tiro.

Stalker