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segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Tábua de marés (8)


“Uma lentidão que parece velocidade”
Coreografia e interpretação: Tânia Carvalho

Música: “Sonata para Piano kvk545”, de Mozart

Pequeno Auditório do TMG, 23 de Outubro de 2008, 21h30

Eis mais uma apresentação integrada no Festival Y#6, uma co-produção da Quarta Parede e TMG. O espectáculo foi produzido no âmbito da “Bomba Suicida” – associação de que a artista é co-fundadora - e estreou no Theatro Circo de Braga, em 2007. Tânia Carvalho tem um vasto curriculum na área da dança contemporânea, tanto a nível interpretativo como criativo. Integrou o Fórum Dança. Coreografou as peças “Explodir em Silêncio Nunca Chega a ser Perturbador”, “Na Direcção Oposta”, “Um Privilégio Característico” e “Newtan”. Desta vez, baseou-se numa frase de Jean Cocteau para dar o título a este espectáculo.
A autora começa por executar a composição para piano de Mozart. Os movimentos estilizados e o desenho do figurino conjugados criam uma atmosfera intimista e onírica. Por momentos, julguei ver um samurai com a sua espada desembainhada. Mas cedo se percebe o intento da coreógrafa: a superação dos limites da partitura musical, que há momentos fora iniciada. Segue-se uma sequência de linguagens diversas, através das quais Tânia Carvalho busca a destruição e recriação do tema musical. Ao fim ao cabo, a dialéctica criadora por definição. E para isso não olha a meios. Recorre então a um texto de Patrícia Caldeira, que utiliza para compor um dos grandes momentos poéticos do espectáculo. Depois da voz, assiste-se a uma sequência de movimentos de dança que aceleram a derrisão, a hecatombe poética e sonora. Por momentos, ouve-se o som do piano como se este tocasse sozinho. Não é do caos que se trata, bem entendido. Mas antes de uma subtil vigor, de uma irreprimível urgência. Diluídos numa composição artística rendida à geometria dos gestos, às convulsões de um corpo que se desdobra incessantemente. Mas parecendo fazê-lo para além dos limites que lhe estavam destinados por uma partitura que já se transmutou noutra paisagem. Afinal, tratou-se simplesmente das várias metamorfoses de uma rendição à música. À sua geometria e à sua perenidade. Afirmou um dia a autora acerca do significado profundo que para si tem a dança: “Gosto desta confusão que é de lhe sentir a essência, mas de não conseguir agarrá-la”. Nada mais apropriado para este singular espectáculo.

Publicado no jornal "O Interior" em 30 de Outubro

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